Internet e democracia – a privatização da esfera pública e a necessidade de uma reforma agrária na nuvem
por Tarson Núñez
O debate sobre as mudanças nas políticas de moderação das redes sociais anunciadas por Mark Zuckerberg em 7 de janeiro vem causando uma polêmica em escala mundial. Com muita razão especialistas na área vem manifestando suas preocupações de que a ausência da moderação vai abrir caminho para um dilúvio de fake news nas redes da Meta. Livres de qualquer moderação ou checagem, extremistas e fanáticos estarão livres para distribuir as mais diversas manifestações de ódio, misoginia e intolerância. Frente esta situação as discussões sobre o controle público das redes sociais tornam a ganhar espaço. Em países como o Canadá e Austrália, ou blocos inteiros como a União Europeia, o debate sobre legislações capazes de controlar a circulação de notícias falsas e mensagens de ódio já avançou bastante.
Estas preocupações procedem, uma vez que no caso do Facebook, mesmo nos tempos em que ainda adotava mecanismos de moderação, esta plataforma já vinha sendo acusada de ser a causa de episódios de violência descontrolada, causada por notícias falsas divulgadas pela internet. No livro “A Máquina do Caos”, de 2023, o jornalista norte-americano Max Fischer mostra a ligação de eventos violentos como massacres étnicos contra a minoria rohinga em Mianmar, ou de linchamentos e violência desenfreada no Sri Lanka, causados por boatos, notícias falsas e discursos de ódio disseminados através da rede de Zuckerberg. Nestes casos, conforme Fischer, a fragilidade dos mecanismos de moderação abriu espaços para discursos de ódio nas redes que se converteram em tumultos, linchamentos e episódios de violência massiva.
Portanto de saída já deveria ficar claro que mesmo com a existência de moderação dos conteúdos, baseada no que eles chamam das “normas da comunidade” as redes sociais já são um espaço complexo e potencialmente perigoso. Isto se explica por conta do modelo de negócio destas redes sociais, que tem como base a busca da captura da atenção dos usuários. O lucro destas empresas se dá justamente em função do tempo que os usuários ficam conectados, permitindo que as mesmas se apropriem dos dados de cada um dos usuários. Estes dados são utilizados para fins de publicidade, para disputas político-eleitorais, para treinamento de dispositivos de Inteligência Artificial, e também, como mecanismos de controle social por parte dos governos. Afinal, desde a instituição do “Patriot Act”, legislação surgida nos EUA logo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, já existe um processo sistemático de compartilhamento de informações entre as “Big tech” e os órgãos de segurança nacional do governo norte-americano.
Isso nos mostra que, de um lado, os mecanismos de moderação sempre foram frágeis e os cuidados com os impactos de notícias falsas e discursos de ódio nas redes nunca foi uma preocupação efetiva por parte dos executivos das “big tech”. Pelo contrário, há uma farta literatura comprovando que as redes sabem perfeitamente que este tipo de conteúdo radicalizado é justamente o que leva a um maior engajamento e, consequentemente, maiores lucros para as empresas. Em seu livro “A Era do Capitalismo de Vigilância”, a professora Shoshana Zuboff, da universidade de Harvard mostra de forma didática como estas empresas foram se aprofundando no estudo dos mecanismos psicológicos de captura da atenção dos usuários, de maneira a criar mecanismos que permitem manter cada um de nós permanentemente engajado, consumindo parcelas cada vez maiores do nosso tempo navegando nas redes sociais.
Mas o que me parece importante compreender é que este tema da moderação de conteúdo é apenas a ponta de um iceberg muito maior e mais assustador. Isto porque o problema não se limita a um eventual controle sobre os discursos de ódio de muitos dos seus usuários. Esta abordagem assim superficial tende a deixar subentendido que se houvesse uma moderação qualificada e cuidadosa o mundo das redes sociais se tornaria um espaço livre de problemas. Nada mais distante da realidade. Pelo contrário, a própria existência destas redes sociais, que hoje monopolizam as interações sociais em grande parte do mundo, se constitui hoje em um mecanismo de acumulação de capital e de controle social.
A existência de uma esfera pública de debate, onde os atores sociais interagem livremente e debatem seus projetos para a sociedade, é uma das condições básicas da democracia. A existência de um espaço onde todas as vozes podem ser ouvidas e os distintos pontos de vista podem ser confrontados e discutidos racionalmente é um dos pilares da vida democrática. Por conta desta importância os próprios meios de comunicação tradicionais, ainda que sejam de propriedade privada, sempre foram submetidos a mecanismos de controle social. As televisões e rádios são concessões públicas. Os jornais e revistas, ainda que não sejam concessões públicas, são responsáveis juridicamente pelo que publicam, podendo ser sancionados em caso de não respeitarem a legislação vigente. Portanto neste caso, ainda que os interesses privados já pudessem incidir e influenciar o debate público, havia ainda algum grau de controle público sobre estes interesses.
Já as plataformas das “Big Tech” não sofrem o mesmo tipo de controle social. Ao mesmo tempo elas hoje praticamente monopolizam quase que a totalidade das interações sociais em grande parte do mundo. E como são empresas privadas seus proprietários tem um controle absoluto sobre como funcionam as nossas interações. As chamadas “regras da comunidade” são extremamente opacas e respondem apenas aos seus donos. Estas regras, assim como os chamados “termos de uso” das plataformas, são elaboradas unilateralmente e respondem apenas aos interesses dos seus proprietários. Portanto o que se pode constatar é que a esfera pública, estes espaços de interação dos indivíduos e comunidades, foi privatizada e hoje é estritamente controlada por um pequeno grupo de indivíduos, muito ricos e poderosos.
Os algoritmos não são mecanismos neutros, isentos de qualquer viés em termos dos conteúdos que são veiculados. Pelo contrário, são mecanismos que permitem direcionar o que circula nas redes de forma a potencializar o engajamento nas plataformas. A informação não circula livremente, ela é controlada e direcionada de forma sistemática e permanente. A ideia de que as redes são espaços “neutros”, onde a informação circula livremente e todos temos possibilidade de acessar informações e divulgar nossas opiniões é uma ilusão cuidadosamente nutrida pelos seus proprietários
E para além dos algoritmos, há interesses e opções que são exercidas de forma muito direta pelas pessoas que controlam o que circula nas redes. Em um relatório de 2023, intitulado “Meta’s Broken Promisses”[1] (As promessas quebradas pela Meta) a Human Rights Watch afirma que a Meta vem silenciando de forma sistemática as vozes em apoio à luta do povo Palestino contra o genocídio. Apenas entre outubro e novembro daquele ano a ONG de direitos humanos identificou 1050 derrubadas e supressões de conteúdos que foram postados por Palestinos ou seus apoiadores. Todos estes casos documentados envolviam conteúdos de natureza pacífica, não indicando qualquer postura violenta ou agressiva. A Human Rights Watch demonstrou que a censura de conteúdo relacionado com a Palestina é sistêmica e global. Este é apenas um exemplo pontual, mas esta lógica de censura e controle do conteúdo é inerente ao modelo de interação social através de plataformas privadas. Não há hoje qualquer mecanismo de controle público e democrático sobre o debate nas redes.
É evidente que este controle não é (ainda) absoluto. Até por interesses de mercado os proprietários das redes precisam permitir em alguma medida informações e posicionamentos mais críticos. Caso contrário, se assumissem explicitamente o seu viés político as redes perderiam muito de sua legitimidade e, mais do que isto, usuários. O que reduziria a sua fonte de renda. E para Zuckerberg e sua turma é importante manter a atenção e o engajamento de todos, independentemente de sua posição política. Por isso este controle explícito é sempre cuidadosamente exercido, de forma a evitar que fiquem muito explícitos os mecanismos de censura e controle dos conteúdos divulgados. Por outro lado, a dimensão da mobilização de baixo para cima também faz com que muitas vezes os esforços de controle não consigam dar conta de suprimir de forma completa as opiniões dissidentes. Isso pode ser visto também no caso da Palestina, onde a mobilização e sensibilização das pessoas contra o massacre vem gerando uma quantidade tamanha conteúdo que tem tornado possível passar por cima dos controles da Meta.
Ainda assim é impossível ignorar os riscos de que os interesses políticos e econômicos dos proprietários das “Big Tech” direcionem o funcionamento das redes no sentido de fortalecer o controle sobre os corações e mentes dos cidadãos do mundo inteiro. O alinhamento da maioria destes “barões da nuvem” a movimentos de extrema direita faz com que a democracia no mundo hoje esteja sob real ameaça. Eles podem, e já o fazem, dirigir as pautas políticas do debate público. Eles podem controlar o que a gente pode ver e, sobretudo, o que a gente não pode ver. De um mecanismo de interação social, que é o que as redes pretendem que são, as plataformas tendem a se constituir em mecanismos de controle social.
Hoje eles já controlam em grande medida o que vemos e o que consumimos, em breve já estarão controlando o que pensamos. Este controle tem impactos muito profundos e globais nas nossas vidas, moldando o mundo em que vivemos. Em seu livro “Tecnofeudalismo: o que matou o capitalismo”, o economista grego Yanis Varoufakis mostra que este controle político das redes por parte das “Big Tech” já vem transformando as relações de produção em escala mundial. O controle político do debate público se converte em controle da economia e converte o mundo inteiro em um espaço controlado por uma dúzia de indivíduos ele chama de “barões da nuvem”. O capitalismo dá lugar ao que ele chama de Tecnofeudalismo, em uma mudança econômica e social de dimensões inéditas em todas as dimensões da nossa forma de vida atual na terra.
Portanto o tema da moderação é um dos menores problemas no que diz respeito ao papel das redes sociais no mundo contemporâneo. E a aliança que se forjou entre os proprietários das “Big Tech” e a ultra-direita conservadora que se materializa na eleição de Trump para a presidência dos Estados Unidos é de fato a maior ameaça à sobrevivência da democracia no mundo. É urgente que o programa das forças democráticas e progressistas no mundo incorporem como prioridade a luta por uma Reforma Agrária na Nuvem. Se não formos capazes de estabelecer mecanismos democráticos de controle sobre as “Big Tech” o destino do mundo será o da consolidação do poder absoluto de uns poucos indivíduos sobre a humanidade no seu conjunto. E essas perspectivas distópicas de um mundo em colapso ambiental e social serão fortalecidas pelo controle privado sobre os corações e mentes dos cidadãos.
As discussões sobre o controle das “Big Tech”, portanto, não podem se limitar à criação de mecanismos de moderação dos conteúdos postados pelos usuários. A questão é muito mais complexa e profunda. É preciso enfrentar o fenômeno em sua globalidade e pensar este debate como uma disputa em defesa da democracia e da liberdade da humanidade. Precisamos enfrentar os “Barões da Nuvem” e recuperar os espaços públicos para a cidadania. Isto implica em confrontar este modelo de controle privado da internet, criar mecanismos de controle público e garantir uma efetiva neutralidade da rede e seu controle por parte da sociedade.
[1] https://www.hrw.org/report/2023/12/21/metas-broken-promises/systemic-censorship-palestine-content-instagram-and
Tarson Núñez – Doutor em Ciência Política pela UFRGS, pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles núcleo de Porto Alegre
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