no Cinegnose

Inteligência Artificial é o ‘zeitgeist’ da Sociedade do Cansaço

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

Nesse momento acompanhamos um grande esforço promocional para mostrar que a Inteligência Artificial é de fato… inteligente. Um esforço sofisticado, porque mobiliza também supostos críticos, como o filósofo Yuval Harari, que acha que por conta própria os algoritmos poderão achar que o ser humano é redundante e decidir dominar o muno. Nesse esforço tenta-se rebaixar a noção de “inteligência”: o exercício diário de tratar máquinas ou aplicativos como formas de inteligência reais. Por isso, Karl Marx tornou-se tão atual – o trabalho morto (os algoritmos) domina o trabalho vivo (o saber-fazer). O modus operandi do Capitalismo desde Revolução Industrial – tirar do trabalhador o controle e capacidade criativa para incorporá-lo nas máquinas e ferramentas. Do tear mecânico até a Inteligência Artificial que se transforma num zeitgeist-fetiche que oculta a luta de classes. O que sobraria ao trabalhador expropriado do seu conhecimento acumulado é transformar o próprio eu como marca para se diferenciar no mercado. Resultando na “Sociedade do Cansaço” (Byung-Chul Han): encenar a si mesmo cansa!

São dois lados de uma mesma moeda: Inteligência Artificial e “Sociedade do Cansaço”, conceito criado pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han para descrever a enfermidade psíquica da sociedade atual.

De um lado, temos um grande esforço envolvendo tons propagandísticos, pós-humanistas distópicos e messiânicos para promover a Inteligência Artificial como um destino inevitável da evolução humana; e do outro, um conceito que tenta representar uma sociedade cujos transtornos, síndromes, desordens e déficits neurológicos se tornaram tão cotidianos que ganharam um inédito impacto cultural e midiático.

Esses dois lados fazem parte de um mesmo fenômeno que só podemos descrevê-lo como o zeitgeist desse início de século XXI – o espírito da época que molda a forma como as pessoas pensam, agem e interagem. Um fenômeno que se tornou uma força cultural e intelectual que influencia o desenvolvimento social e a evolução dos valores e tendências da atualidade. 

Mais uma vez, avanços tecnológicos como a IA surgem dentro de uma retórica utilitarista: a longa história da busca dos códigos digitais em emular o pensamento humano desde o famoso Teste de Turing no pós-guerra até a atual engenharia dos algoritmos das Big Techs vem embalada pelo discurso de que tudo se trata de auxiliar a humanidade, poupando-a de trabalhos repetitivos e enfadonhos, aumentando a produtividade e deixando mais tempo para o ser humano ser… mais humano.

Mas o que acompanhamos é exatamente o contrário, como a realidade atestada pelo conceito de Byung-Chul Han – nunca as exigências do mundo do trabalho foram tão urgentes e até invasivas: não se trata mais de comprovar uma proficiência profissional, mas apresentar a competência comunicativa, psicológica ou cognitivas corretas.

Como descreve Byung-Chul Han, a negatividade disciplinar do velho mundo do trabalho do século XX (centrada na disciplina e controle do saber-fazer) foi substituída pelo excesso de positividade do mundo corporativo que exige a constante performance do EU – o gerenciamento de si mesmo como marca diferencial na qual o antigo saber-fazer foi colocado em segundo plano. Foi substituído pelo bombardeio neuronal das redes sociais, smartphones, home office, o trabalho precarizado mediado por plataformas digitais, o trabalho corporativo fragmentado por “jobs” etc. 

Nesse novo ecossistema, o que importa é performar a competência comunicativa ou cognitiva de sucesso. A proficiência profissional foi substituída pela relacional, o ofício pela performance de si mesmo. Até porque o saber-fazer foi incorporado pela IA. Cabendo ao profissional ser um facilitador de processos.

Numa terminologia marxista, é quando o trabalho morto (os algoritmos) domina o trabalho vivo (o saber-fazer). Seria o modus operandi do velho Capitalismo, desde as máquinas a vapor, o tear mecânico e a máquina de fiar da Revolução Industrial inglesa do século XVIII – tirar do trabalhador o controle e capacidade criativa para incorporá-lo nas máquinas e ferramentas. Do tear mecânico até a Inteligência Artificial.

Expropriação do conhecimento

O Capitalismo não começou exatamente na sua forma comercial, quando transformou a mercadoria num equivalente geral e o mercado como uma praça pública universal. Na verdade, o Capitalismo começou para valer quando caiu a ficha do Capital de que o verdadeiro entrave para a sua livre acumulação era a força de trabalho – artesões e manufatureiros eram donos de si mesmos, isso é, detinham a técnica e suas próprias ferramentas criadas a partir de um conhecimento acumulado por gerações.

Ou seja, tinham a autonomia para ditar seu próprio tempo, ritmo e as suas próprias metas comerciais. Pode parecer a descrição atual do moderno empreendedor. Mas a diferença é que, hoje, o capital está travestido de plataforma digital.

Para quebrar a última resistência contra a liberdade plena do capital, as oficinas criaram as máquinas a vapor, dando início a Revolução Industrial – ferramentas e conhecimento do ofício acumulado foram expropriados do trabalhador e alocados na máquina. O trabalho complexo torna-se simples, reduzido a movimentos repetitivos e o ritmo da produção (e do lucro) comandado pela gerência que agora administra grandezas quantitativas. E não mais qualitativas, complexas e difíceis para serem encaixadas em, por exemplo, planilhas ou relatórios de produção.

Karl Marx descreveu muito bem esse processo na sua obra máxima “O Capital”. Principalmente o fenômeno tipicamente capitalista em que o trabalho morto (o trabalho passado incorporado pela máquina) domina o trabalho vivo (do, outrora, artesão), transformando-o em operário – aquele cuja função é apenas azeitar o processo de produção (e fazer a manutenção da máquina) para torná-lo mais rápido e lucrativo. E toda a fantasmagoria ideológica que oculta essa realidade: o fetichismo da mercadoria.

 Toda genialidade tecnológica do Capitalismo surge dessa premissa simples, mas fundamental para a sobrevivência do capital: transformar aquilo que é complexo e qualitativo em simples e quantitativo. Da máquina a vapor, passando pela eletrificação e o surgimento da linha de montagem, chegando à automação por máquinas de controle numérico, robótica e controle de processos por computador, o objetivo é expropriar da força de trabalho o saber-fazer, o ofício e o conhecimento acumulado, transferindo-os para níveis de comando cada vez mais elevados.

E percebe-se que o sentido do desenvolvimento tecnológico é partir da expropriação do conhecimento do chão da fábrica (os chamados “colarinhos azuis”) até alcançar cada um dos níveis dos “colarinhos brancos”: capatazia, gerência, diretoria etc.

Com a Inteligência Artificial, finalmente o capital alcança o topo da hierarquia dos “colarinhos brancos”: os trabalhadores intelectuais – o poder decisório, criativo e avaliador de CEOs, professores, juízes, artistas, programadores, designers, engenheiros etc.

Assim como os “colarinhos azuis” eles não desaparecerão completamente – serão apenas reduzidos drasticamente, resultando num grande contingente populacional quem nem mais para ser explorado servirá. Os que restarem, terão a descrição de função ressignificada: se tornarão “facilitadores”, “tutores”, “orientadores”, “responsáveis” etc.

De todas as máquinas inventadas pelo Capitalismo, a Inteligência Artificial é a ideologicamente mais delicada. Da máquina a vapor à robótica foi fácil a expropriação do conhecimento dos trabalhadores: tudo passou como uma evolução inevitável para aumentar a produtividade, satisfação dos consumidores etc. A Publicidade e a Sociedade de Consumo justificaram isso.

Rebaixar a noção de “inteligência”

Com a IA é mais complicada: dessa vez a expropriação é do trabalho intelectual, de criação, decisão e julgamento. A PsyOp deve ser mais elaborada para induzir a acreditar que algoritmos, aplicativos etc. são, de fato, ferramentas realmente inteligentes. Para acreditarmos nisso, temos que obrigatoriamente reduzir os nossos padrões de inteligência humana – o exercício diário de tratar máquinas ou aplicativos, como por exemplo Waze ou Google Maps, como formas de inteligência reais. O que resulta num senso de realidade mais flexível.


Yuval Harari e Jaron Lanier

Essa PsyOp elaborada, por exemplo, pelo filósofo ideólogo do Vale do Silício, Yuval Harari, apela para o terror distópico. Segundo ele, a humanidade estaria próxima de se tornar irrelevante –  o ser humano se tornaria “redundante” ou “irrelevante” porque os algoritmos se tornariam “inteligentes” –  clique aqui.  Uma narrativa promocional criada pelas corporações para rebaixar ou tornar mais flexível a noção de “inteligência” – acreditamos que os algoritmos “ampliam nossas habilidades”. E, por isso, nos ameaçaria de obsolescência ao substituir a autoridade humana.

Para o cientista computacional e design de softwares Jaron Lanier, essa inversão é a base de uma religião que está sendo gestada nesse momento no Vale do Silício: a religião da auto abdicação humana – computadores se humanizam, enquanto humanos se tornam “processadores de informação” rebaixando os padrões do que entendemos como inteligência.

Tudo se passa como se os “algoritmos” de repente alcançassem a singularidade e decidissem por conta própria dominar a humanidade – Elon Musk, por exemplo, vislumbra esse futuro distópico. Por isso… vamos para Marte!

Por isso a IA alcança o status de zeitgeist moldando a forma como as pessoas pensam, agem e interagem. Ganha uma narrativa fetichista que oculta o modus operandi do velho capital: transformar o trabalho intelectual complexo em rotinas simples. Apenas que, dessa vez, o “progresso” não mira mais os colarinhos azuis, mas o topo dos colarinhos brancos.

Expropriado do seu saber-fazer, do seu conhecimento profissional acumulado por gerações (e transmitido pela educação universitária) e transformado num “gestor” ou “facilitador”, o que resta ao trabalhador intelectual do que a si mesmo – o seu Eu como marca a ser promovida, personalidade que deve ser performatizada.

Não é por menos que cada vez mais os processos seletivos corporativos estão se assemelhando a games ou reality shows. Há uma lógica nisso: se o conhecimento técnico e proficiência profissional foram rotinizados pelos algoritmos, o único diferencial passa a ser relacional, comunicativo – as novas competências necessárias: proatividade, resiliência, empatia, liderança, identificação, inteligência emocional. Quando se fala em “conhecimentos específicos”, nada tem a ver com a profissão ou ofício, mas “proficiência em softwares, ferramentas ou processos específicos da área”.

Ou seja, um facilitador, assim como, na Revolução Industrial, o operário era o responsável pelo bom funcionamento da máquina: mantê-la lubrificada etc.

Não por menos que temos como presidente do Império norte-americano um ex apresentador de um reality show televisivo, “O Aprendiz”, Donald Trump, que transformava um processo seletivo em um game, cujo final era emblemático: “You Fired!”… Trump demitia um candidato que não correspondesse à performance exigida.

Um exemplo na nossa realidade brasileira: a TV Tribuna (emissora afiliada a Rede Globo de Santos/SP) criou o programa “Reality Porto” – um game de processo seletivo dividido em episódios cujo vencedor conseguirá uma colocação em uma conceituada empresa portuária. Cada vez mais critérios, comunicacionais, comportamentais e emocionais dos processos seletivos se aproximam da linguagem ficcional. Televisiva ou teatral.

O cansaço de encenar a si próprio

Encenar a si mesmo cansa! Também não é por menos que a nossa sociedade pode ser definida como a “sociedade do cansaço”, como conceitua o filósofo Byung-Chul Han.

Se no século passado o grande mal era o stress ou a “estafa” pelo ritmo do trabalho segundo o paradigma da linha de montagem, no século XXI os males ficaram psiquicamente e neurologicamente mais perversos: a depressão, déficit de atenção, síndrome de hiperatividade, transtorno de personalidade limítrofe, síndrome de Burnout e assim por diante.

Mas talvez o problema de encenar a si próprio não seja exatamente o problema. Desde quando Maquiavel comparou a política a um palco de teatro, encenar a si mesmo passou a ser a própria dinâmica da esfera pública, desde os rituais de etiqueta e moda.

A fotografia e, mais tarde, as selfies nas redes sociais são a continuidade dessa encenação do Eu na esfera pública.

O problema é quando essa encenação se torna perversa e mitômana: quando o indivíduo começa a acreditar na própria encenação (pela performance bem-sucedida que, por exemplo, o faça vencer o “Reality Porto”) e esquece quem é ou quem já foi! O Eu em que a simulação substitui o real, a selfie e o feed da rede social substitui a vida real do usuário.

Cultura coaching, literatura de autoajuda, religiões neopentecostais motivacionais e todo um aparato de tecnologias do Eu exigem hiperfoco, mas paradoxalmente o resultado é o cansaço, a dispersão cognitiva. Que se retroalimentam como fraquezas do ego que exigem um maior esforço e vigilância de um ego que se desmorona.

É o mal desse excesso de positividade (a cultura motivacional, confessional, a auto expressividade super estimulada etc.), marcado pelo bombardeio neuronal nas redes sociais, smartphones, home office, o trabalho precarizado mediado por plataformas digitais, o trabalho corporativo fragmentado por “jobs” etc. 

Veja bem… esse humilde blogueiro não é um ludista – -aqueles trabalhadores ingleses que durante a Revolução Industrial se rebelaram contra as máquinas que substituíam o trabalho manual. Destruindo máquinas, principalmente teares e outras ferramentas de tecelagem, como forma de protesto contra as mudanças tecnológicas que ameaçavam seus empregos e condições de vida. 

Ferramentas de IA podem ser uma grande ajuda, não sou contra elas. Ela pode despertar ideias, corrigir a gramática e suavizar os pontos difíceis em um texto. Ou ainda usar a IA para iniciar um rascunho ou encontrar a palavra certa. 

O problema é a função de zeitgeist que a IA exerce na atualidade. Como fetiche (o perigo dos algoritmos sencientes e autônomos que podem supostamente destruir a humanidade) e controle no mundo do trabalho. Não mais o controle e expropriação pela disciplina da linha de montagem. Mas agora pela super motivação do Eu.

Wilson Roberto Vieira Ferreira – Mestre em Comunicação Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi. Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no “Dicionário de Comunicação” pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros “O Caos Semiótico” e “Cinegnose” pela Editora Livrus.

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Last Update: 29/05/2025