Principal porta de entrada de refugiados no Brasil, a Região Norte agora conta com um programa voltado especificamente para ajudar essa população a ingressar no mercado de trabalho. Na terça-feira 17, a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), em parceria com o Pacto Global – Rede Brasil e com o Instituto Hermanitos, inaugurou o Hub Amazonas do Fórum Empresas com Refugiados, cujo objetivo é engajar o setor privado nesse esforço.
De janeiro a junho deste ano, a região recebeu mais de 12,6 mil indivíduos que deixaram seus países de origem para fugir de conflitos, crises humanitárias ou perseguições políticas, segundo o Observatório das Migrações (OBMigra). Roraima lidera o ranking, com 7,5 mil refugiados, a maioria venezuelanos, seguido por Amapá (3,8 mil) e Amazonas (exatos 1.025). Embora figure na terceira posição, o Amazonas consolida-se como um polo de residência fixa para essa comunidade migratória, uma vez que muitos se mudam de estados vizinhos para lá, em busca de melhores condições de vida.
De acordo com o OBMigra, o Amazonas recebeu 3,4 mil pedidos de refúgio em 2024, o que representa 5% do total nacional, atrás apenas de São Paulo e Roraima. Nos últimos sete anos, o estado acumula 107 mil refugiados e migrantes. “Nosso projeto representa o reconhecimento da Região Amazônica como um território de oportunidades e protagonismo na resposta humanitária, promovendo a inclusão com impacto, valorizando as especificidades regionais e construindo soluções alinhadas à realidade local”, ressalta Tulio Duarte, diretor-presidente do Instituto Hermanitos. O Hub Amazonas nasce com a adesão de 17 empresas e centenas de refugiados cadastrados no banco de talentos. Para aderir ao projeto, o empresariado assume o compromisso de respeitar direitos e a dignidade humana.
“O Brasil tem uma legislação acolhedora para refugiados, mas ainda precisa avançar na construção de políticas públicas. Já temos, por exemplo, políticas universais nas áreas de saúde e educação, mas precisamos de uma iniciativa específica para que as pessoas que escolhem nosso País para viver não fiquem para trás, possam ser inseridas no mercado de trabalho”, observa Paulo Sérgio de Almeida, oficial de Meios de Vida do Acnur no Brasil, citando também a dificuldade que essa população enfrenta quando tenta revalidar o diploma de curso superior, o que empurra refugiados com nível superior para o subemprego e até mesmo para situações de trabalho análogo à escravidão.
Segundo Duarte, embora a validação de diplomas ainda seja um desafio, algumas empresas aplicam soluções internas para integrar os profissionais em funções mais qualificadas. “É verdade que a maioria das vagas ainda está concentrada em áreas como serviços, alimentação e construção civil. No entanto, há casos bem-sucedidos em setores como tecnologia, onde refugiados têm atuado em suas áreas de especialização.” Um recente relatório revela que a grande maioria dos imigrantes da Venezuela que viviam na capital amazonense estava desempregada ou na informalidade em 2022. Apenas 4,5% deles tinham carteira assinada, 20,3% estavam desempregados e em busca de trabalho e outros 8,4% nem tinham nem buscavam trabalho, os chamados desalentados, muitos dos quais vivem da mendicância nos sinais de trânsito dos centros urbanos.
Gisela Alcalá, de 53 anos, chegou em Manaus em 2018. Trabalhou como diarista, vendedora de água e ajudante de pedreiro, bicos que nem de longe correspondem à sua formação de engenheira industrial, com especialização em comércio internacional. Hoje, depois de dois anos trabalhando no Instituto Hermanitos, conseguiu reposicionar-se profissionalmente e trabalha como coordenadora de manutenção SMD em uma empresa de manufatura.
A região recebeu 12,6 mil imigrantes apenas no primeiro semestre deste ano
“Eu lutava por uma oportunidade, mas tinha contra mim a idade e o fato de ser mulher, migrante venezuelana e sem referências. Ninguém acreditava em mim. Fiz vários processos seletivos e em nenhum fui chamada para a entrevista”, relembra. “Só depois da ajuda do Hermanitos pude buscar algo melhor, me apresentei em um fórum de empresários e consegui ser contratada pela Visteon Amazonas, onde vou completar três anos em breve.”
Antes de se tornar empreendedora, a jornalista Liz Martinez, também venezuelana, precisou submeter-se a subempregos. Morando há sete anos em Manaus, trabalhou como cuidadora de crianças, cozinheira e professora de espanhol em um abrigo para crianças em situação de risco. Em 2022, fundou a Acompañadas, uma organização civil que apoia mulheres migrantes oferecendo treinamento profissional e orientações sobre empreendedorismo. “O meu primeiro grande obstáculo foi a língua. Muita gente não arruma trabalho porque não consegue comunicar-se bem”, diz, citando o desconhecimento da legislação como outro desafio para os refugiados.
“O Hub é um espaço onde vamos trazer as empresas para perto e atuar junto aos departamentos de recursos humanos dessas organizações, para que haja um acolhimento dos refugiados e imigrantes, tornando as empresas mais plurais, a abraçarem a diversidade e enxergarem cada colaborador como alguém importante para o sucesso dos negócios”, salienta Duarte. Ele destaca que o Hermanitos também vai orientar os candidatos em cada etapa da seleção de emprego, desde a produção do currículo, preparação para a entrevista e cursos de qualificação, além de contar com um banco de talentos que ficará disponível para as empresas acessarem e conferirem o perfil dos profissionais cadastrados. A expectativa do projeto é de que cerca de 200 refugiados sejam inseridos no mercado de trabalho de Manaus ainda este ano, número que deve ser progressivamente ampliado nos anos seguintes.
“Somos pessoas capacitadas, temos formação e conhecimento, trazemos uma bagagem que podemos aplicar nas empresas”, diz Martinez. “Além de ajudarem famílias que estão fragilizadas por um contexto de migração forçada, as empresas vão ganhar profissionais e técnicos preparados.” •
Publicado na edição n° 1368 de CartaCapital, em 02 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Integração efetiva’