Depois de negar a ciência, o Conselho Federal de Medicina agora tenta calar os críticos. Não por acaso, a ofensiva jurídica movida pela entidade contra Lígia Bahia, professora e pesquisadora da UFRJ, provocou uma avassaladora onda de repúdio na comunidade científica. Em agosto do ano passado, a médica sanitarista criticou, durante uma entrevista ao canal do ICL no YouTube, decisões obscurantistas tomadas pelos conselheiros do órgão, que deram aval ao uso off label da cloroquina em meio à pandemia, quando diversas pesquisas já apontavam a ineficácia do medicamento para tratar a Covid–19, e ainda questionaram a obrigatoriedade da vacinação de crianças contra o Coronavírus. Bahia não disse nenhuma novidade, esses episódios foram exaustivamente debatidos na mídia. Ainda assim, a direção do CFM ingressou na Justiça com uma ação, cobrando uma retratação pública e uma indenização de 100 mil reais. “O que vão fazer agora, após incontáveis entidades médicas e científicas saírem em defesa dela? Vão processar todos nós?”, indaga Rômulo Paes de Sousa, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, a Abrasco.

“As declarações da professora Lígia Bahia refletem consensos científicos amplamente reconhecidos tanto no Brasil quanto internacionalmente. Ao buscar puni-la por defender estratégias baseadas em evidências científicas, o CFM afasta-se dos princípios básicos da ciência e da liberdade de expressão, que fundamentam a vida acadêmica e as sociedades democráticas”, diz uma nota conjunta da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). As manifestações de solidariedade ultrapassaram os muros da academia, mobilizando também organizações estudantis, sindicatos e até pessoas comuns, que demonstraram sua indignação nas redes sociais e em fóruns da internet.

Presidente da ABC, a biomédica Helena Nader qualifica a investida do CFM como um “processo invertido”, porque as declarações de Bahia foram baseadas em dados científicos, enquanto a postura do Conselho tem como base “a visão política de alguns”. “Apesar de todas as evidências, muitos continuaram prescrevendo a cloroquina durante a pandemia e dizendo que a vacina mata. Isso não é medicina. A sociedade não pode ficar a mercê de profissionais que se guiam por convicções políticas, e não pela ciência.” Já Francilene Garcia, vice-presidente da SBPC, considera a ofensiva do CFM preo­cupante não apenas pelo desprezo à ciência, mas também por tentar “silenciar e intimidar as vozes de outros pesquisadores e profissionais de saúde que se expressam de forma crítica à sua conduta”.

A médica é alvo de processo por criticar o negacionismo da entidade na pandemia

Se o objetivo era intimidar os críticos, o tiro saiu pela culatra. “A comunidade científica inteira saiu em defesa de Lígia, e não vi ninguém manifestar solidariedade ao CFM. Isso mostra o quão isolados eles estão. Do ponto de vista acadêmico, são irrelevantes”, observa Sousa, da Abrasco. Para o médico epidemiologista, o Conselho está cada vez mais “deslocado de suas funções”. De fato, a politização da entidade é escancarada. Em 2018, logo após Jair Bolsonaro derrotar o petista Fernando Haddad nas eleições, o presidente do Conselho, José Hiran da Silva Gallo, publicou um texto afirmando que a esperança havia vencido o medo. Durante todo o governo do capitão, houve um claro alinhamento ideológico. Além de avalizar a cloroquina e questionar a vacinação infantil, o CFM também aprovou, em 2022, uma resolução restringindo o uso terapêutico do canabidiol. Na esteira dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, a segunda vice-presidente da entidade, Rosylane Rocha, chegou a celebrar a invasão bolsonarista às sedes dos Três Poderes. Nas redes sociais, ela publicou imagens do quebra-quebra e escreveu frases como “Agora vai” e “STF, vergonha nacional”.

Nas últimas eleições para renovar o quadro de conselheiros do CFM, houve até a distribuição de panfletos com conotação claramente partidária, como um intitulado “Fora PT da Medicina”. ­Aliás, uma correção: não houve renovação alguma. Por unanimidade, Gallo foi escolhido para continuar à frente do Conselho até 2029. O ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente também foi reeleito para representar o estado do Rio de Janeiro. Ele é coautor de uma resolução do CFM, aprovada em abril de 2024, que proibia o uso da assistolia fetal a partir da 22ª semana de gestação, mesmo em casos de mulheres e crianças vítimas de violência sexual. O procedimento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde em abortos tardios, e o Supremo Tribunal Federal suspendeu a norma. Ainda assim, a restrição ganhou sobrevida no PL 1940/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante, que visa restabelecer a proibição e impor uma pena de até 20 anos de prisão às mulheres que abortarem após a 22ª semana.

Politização. O bolsonarizado CFM avalizou o uso da cloroquina contra a Covid–19 – Imagem: Mateus Bonomi/Agif/AFP

Defensor da resolução, Gallo chegou a ir ao Senado para apoiar o projeto de Cavalcante. “O direito à autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós de proteger a vida de qualquer um”, discursou o presidente do CFM durante uma audiência pública no plenário da Casa Legislativa, um verdadeiro show de horrores montado por parlamentares fundamentalistas, incluindo a encenação de um feto agonizando no ventre materno e a exibição de bonecos de borracha.

A tentativa de restringir o aborto legal é outro aspecto que Lígia Bahia criticou durante a entrevista. Não satisfeito em processar a professora, o CFM também acionou judicialmente o ICL e o Google, proprietário do YouTube, para remover o conteúdo da plataforma de vídeo. A defesa da pesquisadora está a cargo do escritório Vilhena e Silva Advogados, especializado em questões de saúde. A banca sustenta que sua cliente não ultrapassou os limites de expressão: “Tudo que foi falado tinha base em evidências científicas e foram amplamente discutidas”. Procurado por CartaCapital, o CFM informou que não comentará o caso fora dos autos.

“Estão isolados. Na academia, são irrelevantes”, diz Sousa, da Abrasco

Reitor da UFRJ, o epidemiologista Roberto Medronho relata que a comunidade acadêmica recebeu a notícia do processo com “um misto de muita preocupação e uma dose importante de indignação”. De acordo com ele, o Conselho Universitário está prestando todo apoio necessário à professora, além de mencionar uma “grande mobilização” de diversos setores do corpo social, incluindo professores, servidores e alunos. “A Lígia é uma das mais brilhantes pesquisadoras em saúde pública do Brasil, excelente professora, médica respeitada, por isso essa onda de solidariedade tão impressionante”, justifica. Para Medronho, a tentativa do CFM de calar vozes dissonantes numa democracia é inaceitável, sobretudo no meio acadêmico. “A universidade é o lugar do contraditório e do debate.”

Doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz, Lígia Bahia é uma das mais destacadas defensoras do SUS no País e uma crítica contumaz da cartelização nos planos de saúde. A professora foi orientada pelos seus advogados a não se manifestar sobre o caso no momento, por isso não atendeu ao pedido de entrevista de CartaCapital. Na prática, já há quem cuide de sua defesa, e não se trata apenas dos seus advogados. “Não faltam colegas dispostos a defendê-la, o CFM cometeu um enorme equívoco”, observa o presidente da Abrasco. “Eles tentaram silenciar uma voz, mas acabaram despertando milhares de outras. O jogo virou.” •

Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Inquisidores na fogueira’

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Last Update: 13/02/2025