A preocupação com os preços dos alimentos, seus efeitos sobre os mais pobres e a proximidade das eleições presidenciais talvez explique, mas certamente não justifica, decisões apressadas do governo na tentativa de resolver o problema, que é conjuntural e deve arrefecer em dois ou três meses, avaliam especialistas. A proposta do presidente Lula, de conversar com atacadistas e supermercados na tentativa de baixar os preços, faz sentido, mas não apenas enquanto ação pontual. “O governo deveria estar constantemente em contato com esse setor. Muitas vezes uma frase mal colocada provoca ruídos no mercado. Essa afirmação de que agora é preciso baixar as margens é um exemplo disso. Se o governo mantivesse uma relação próxima, poderia fazer os ajustes sem sobressaltos”, afirma o economista Walter Belik, professor titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Instituto Fome Zero.
O governo mapeia o problema. “Fizemos um diagnóstico para o presidente Lula da situação atual, sobre o que aconteceu em 2024, de onde vieram as pressões de preços nos alimentos, e uma análise sobre as eventuais causas dos aumentos, item por item, pois cada produto é uma história diferente. Quanto a propostas para conter eventuais aumentos de preços dos alimentos, isso está em discussão”, destaca Guilherme Mello, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. A alternativa de redução da alíquota de importação, combatida ferozmente pelo agronegócio, está na mesa de discussões. “Os ministros falaram dessa possibilidade, a ser estudada caso a caso, de quando se aplica e quando não se aplica, na hipótese de isso ser necessário. Não seria uma regra aplicada a todos os alimentos, mas de acordo com cada situação, após ver como está o mercado internacional, como estão os preços domésticos, as perspectivas de plantio e de colheita. Essa é, portanto, uma possibilidade”, sublinha Mello. “E, obviamente, seguiremos acompanhando para ver se existem outras medidas que podem ser discutidas e tomadas para conter os preços dos alimentos e fazer chegar mais barato nas mesas dos consumidores.”
Para Belik, há uma situação sazonal que deverá reverter-se em dois ou três meses, tudo é uma questão de conseguir segurar essas pressões nesse período. Um dos motivos do cenário favorável mais adiante é o movimento do dólar, que, apesar de ser voltado para produtos de exportação, acaba definindo a dinâmica de preços interna. A moeda estadunidense está retornando para um patamar razoável, e deve cair ainda mais. Além disso, a proposta de Trump para a economia requer que o Fed baixe a taxa de juros, o que vai jogar o dólar ainda mais para baixo em relação ao real. “Do ponto de vista da pressão cambial, haverá um alívio nos próximos meses. Do ponto de vista da agricultura, há a entrada de nova safra e as previsões dos climatologistas são de que, este ano, apesar da previsão de temperaturas altas e menos chuvas, não teremos os efeitos do El Niño, como ocorreu em 2024”, frisa o economista.
Diante da perspectiva de uma volta à normalidade, prossegue Belik, não adianta criar agora programas que mudariam totalmente as formas de comercialização. É mais racional o governo conversar com os agentes de mercado e ver o que é possível fazer em termos emergenciais.
O preço da carne decolou no mercado e os frigoríficos passaram a abater vacas, o que elevou o preço do leite
O governo – sem planejamento, ao que tudo indica – age no calor das crises e nem sempre toma a decisão mais acertada, mostra o exemplo da carne, que puxou a inflação dos alimentos nos últimos meses, em especial no fim do ano. A alta desse produto tem a ver com o dólar e pressões de mercado, externas e internas. A renda do brasileiro subiu e as pessoas estão comendo mais. Houve ainda abate de vacas, para aproveitar o preço alto da carne, e isso impactou muito o preço do leite. Acrescente-se o fator do ciclo pecuário também. “Este é o momento de um bom Ministério da Agricultura chamar os frigoríficos e os pecuaristas e informar que o governo manterá certa estabilidade dos preços, indagar quanto de carne se pretende colocar no mercado e propor a manutenção de um colchão de suprimento para o consumo interno. Tem uma série de coisas que daria para conversar e ver o que é possível fazer. Em vez de enfrentar a posteriori, tentar se antecipar aos problemas”, afirma Belik.
Não é só um problema de comunicação com o público, mas de trabalhar de forma mais afinada, mais ajustada com as expectativas de mercado e com o que está acontecendo. E não ficar também criando crises, pois essas situações acabam resultando nisso.
Um exemplo de programa muito bom prejudicado pela precipitação é a “Farmácia Popular dos Alimentos”, em discussão no governo. “O ministro da Casa Civil, Rui Costa, anunciou a iniciativa, que ainda está em fase embrionária. Estão sendo feitos estudos para saber como poderia ser realizado, para, com produtos da cesta básica, atender participantes do Bolsa Família, ou poder usar o cash back da nova legislação tributária para poder comprar. Se está em estudo, não faz sentido antecipar. Quando essa informação sai na imprensa, a gente sabe que a reação é multiplicada pelos influenciadores, que não são muito favoráveis ao governo”, dispara Belik. “Logo depois da história do Pix, sai uma notícia dessas. Como é que passa para a população? Ah, o governo vai intervir no mercado.”
A alternativa, propõe o economista, seria chamar a Associação Brasileira de Supermercados para conversar e informar que a ideia é vender nos supermercados uma cesta básica com preço mais ou menos fixo ou, ao menos, controlado. “Eu acho que os supermercados estão dispostos a conversar. Isso aumenta o volume de vendas dos supermercados, gera tráfego nas lojas das redes, é ótimo. Por que não?”
Outro espaço para negociação é o momento em que os supermercados terão de repor seus estoques, formados com o dólar acima de 6 reais. É o momento de sentar com os donos de frigoríficos e ver o que está acontecendo com a oferta interna, se está diminuindo. “É possível melhorar a situação. Por exemplo, agora que baixou o preço do dólar, para quem comprou em dezembro com o dólar a 6,20 reais, poderia colocar o produto em promoção”, sugere o diretor do Instituto Fome Zero. “Tem de conversar, atuar de forma mais política.”
Há precedentes dessa maneira de atuação. A regulação do mercado de alimentos passa muito por legislação municipal e um caso sempre citado pelo Instituto é do período do governo Cristovam Buarque, no Distrito Federal, nos anos 1990. Não existia o Plano Real e havia hiperinflação. O secretário de Agricultura, João Luiz Homem de Carvalho, fez um acordo com as grandes redes de supermercados para comercialização de produtos frescos da agricultura familiar a um preço fixo em troca de abatimentos no IPTU. Caso o mercado reservasse 10% da área de vendas para oferecer esses produtos, quem aderisse ao programa receberia 10% de abatimento no IPTU. Isso foi feito em outros lugares também.
Campanhas de alimentos, com bancas colocadas diante das estações de metrô a preço fixo, autorização para caminhões estacionarem para vender produtos em época de safra a um preço aprovado pela prefeitura e a organização de feiras móveis que percorriam determinados bairros foram medidas bem-sucedidas adotadas na gestão de Luiza Erundina à frente da prefeitura de São Paulo, adotadas também na administração de Marta Suplicy. Iniciativas como essas ampliam a oferta de alimento nas áreas mais carentes e complicadas, onde normalmente o preço é mais alto e contornam o problema do acesso por parte do morador de periferia, que não tem como ir até o atacadão durante a semana. Uma das propostas do Plano Nacional de Abastecimento que não foi implementada é um incentivo à realização de feiras livres noturnas, ideais para quem trabalha o dia todo.
A necessidade de o governo atuar de maneira mais política para equacionar problemas de preços dos alimentos fica mais clara quando se percebe a variedade de situações e interesses presentes na agricultura e na pecuária do País. “Eu acho que não devemos enxergar esse setor, chamado de ‘agronegócio’, sempre em disputa ou competição com o Estado brasileiro, seja quem for o governo e de diferentes matizes políticos. Até porque boa parte dele é composta de agricultores familiares, que são os que produzem grande parcela dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros como carnes de aves, suínos, mandioca, leite, feijão e outros”, sublinha o agrônomo Marcio Gazolla, professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Ele considera agronegócio um termo “genérico demais para descrever tudo o que cabe dentro dele” e acredita que a melhor designação é “sistema alimentar”. Ao contrário dos agricultores familiares, os médios e os grandes estão mais ligados à produção da pecuária, grãos e commodities.
O Estado brasileiro precisa apoiar ambos os grupos de agricultores, pois o País necessita de alimentos para o mercado interno e o abastecimento alimentar da população, provenientes da agricultura familiar, e para o mercado externo também, a partir das exportações de médios e grandes produtores de carnes, frutas e soja, para ficar em alguns exemplos de cadeias de abastecimento internacionalizadas, acrescenta Gazolla. “As exportações geram divisas importantes ao Brasil e este é o único plano de desenvolvimento que temos posto em prática, há séculos, infelizmente”, ressalta o professor. •
Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Inimiga da perfeição’