Mais de 30 crianças são vítimas de abuso sexual por dia no estado de São Paulo. Somente em janeiro, foram registrados 1.285 casos consumados de violência sexual, dos quais 979 – 82% do total – foram classificados como estupro de vulnerável, quando a vítima tem menos de 14 anos. Os dados estão disponíveis no Portal da Transparência da Secretaria de Segurança Pública. A Lei nº 17.431, de 14 de outubro de 2021, obriga o governo paulista a divulgar os índices de violência contra a mulher.
Janeiro não foi um ponto fora da curva. Em 2024, foram registrados 3.306 casos de estupro consumado em São Paulo, contra indivíduos com mais de 14 anos, e outros 10.484 casos de estupro de vulnerável. Na prática, isso significa que sete em cada dez vítimas de violência sexual eram crianças ou adolescentes que mal haviam saído da infância. O número de ocorrências cresceu 12,3% nos últimos três anos, alerta Celeste Leite dos Santos, promotora do Ministério Público paulista e presidente do Instituto Pró-Vítima. “Na maioria dos casos, são meninas de 2 a 13 anos de idade.”
Apesar do cenário desolador, o governo paulista tem reduzido os investimentos em programas para proteger essas meninas, denuncia o deputado estadual Paulo Fiorilo, do PT. No ano passado, a Secretaria de Políticas para a Mulher, comandada por Valéria Bolsonaro – casada com um primo em segundo grau do ex-presidente Jair Bolsonaro –, tinha disponível 24,2 milhões de reais para gastar, mas apenas 9 milhões foram empenhados, o restante foi contingenciado, revela uma análise da execução orçamentária feita pelo parlamentar. Dos 5 milhões de reais previstos para a rubrica “Enfrentamento à Violência Contra a Mulher”, nenhum centavo foi gasto.

Inimigo íntimo. O perigo está mais perto do que as famílias brasileiras imaginam, alerta a ONG Childhood Brasil – Imagem: Childwood Brasil
O aperto deve repetir-se em 2025, revela a análise do deputado Fiorilo. Dos 36,2 milhões reservados no orçamento deste ano, ao menos 20,3 milhões estão contingenciados. Assessora de projetos na Secretaria de Políticas para a Mulher, Kate Maciel Mota reconhece que a pasta também é responsável por prestar acolhimento a crianças e adolescentes vítimas de abuso, mas pondera que as ações direcionadas a esse público são “desenvolvidas de forma transversal”. Nesse arranjo, a secretaria por vezes atua como articuladora de políticas públicas, mas sem utilizar recursos próprios para custear as iniciativas. Os investimentos podem ser feitos por outros órgãos da administração estadual. Não seria justo, portanto, observar uma rubrica específica e desconsiderar o conjunto de iniciativas do governo.
O problema é que a escassez de recursos para proteger as meninas também é notória em outras áreas. Em 2024, o governador Tarcísio de Freitas congelou os investimentos para a ampliação das Delegacias da Mulher 24 horas, sob responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública. À época, a justificativa era de que o governo estava estruturando delegacias destinadas à proteção de todas as vítimas de violência interpessoal, incluindo crianças, adolescentes, mulheres e idosos. No entanto, dos 40 milhões de reais previstos para esse projeto, nenhum centavo foi executado. No orçamento deste ano, a rubrica 6560, destinada a essa finalidade, prevê 16 milhões de reais, dos quais 15,1 milhões foram contingenciados – 94% dos recursos.
Após a entrevista de Maciel à reportagem, a assessoria de imprensa do governo paulista enviou uma nota reforçando o caráter “multissecretarial” das ações de combate à violência contra crianças e adolescentes e detalhando uma série de iniciativas de “acolhimento e proteção”. O texto não informava, porém, qual foi o volume de recursos reservado para cada uma dessas ações no orçamento, nem quanto efetivamente foi empenhado ou executado.
Especialistas concordam que a escassez de recursos para serviços de acolhimento às vítimas contribui para agravar o quadro, mas a principal falha está na prevenção. Faltam campanhas informativas e espaços de escuta acolhedora, observa o advogado Rildo Marques de Oliveira, representante da OAB no Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana. “Toda criança vai à escola, ou pelo menos deveria ir. Então, esse também deveria ser um espaço para educá-las a identificar e denunciar casos de abuso sexual”, avalia. “A Secretaria de Segurança argumenta que o aumento de registros se deve à eficiência dos canais de denúncia, mas isso não é verdade. A violência de fato aumentou, e pouco é feito para preveni-la.”
A educação sexual é um importante instrumento para prevenir abusos contra crianças
Recentemente, a Childhood Brasil lançou a campanha “Olhe Mais de Perto”, para alertar a população sobre o problema. Segundo a ONG, apenas 8,5% dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes são denunciados. Além disso, 85% dos abusos são cometidos por pessoas conhecidas ou até mesmo por familiares – na maioria das vezes, dentro da casa das vítimas.
Além dos ataques à educação sexual e de gênero, não é incomum que líderes religiosos orientem seus fiéis a não denunciarem à Justiça parentes ou membros da própria comunidade religiosa envolvidos em casos de abuso, lamenta Oliveira. Muitas vezes, o relato das crianças é colocado em dúvida. Não por acaso, causou assombro a pregação da cantora e pastora evangélica Baby do Brasil em um recente culto em São Paulo, no qual ela pareceu sugerir exatamente isso: “Perdoa tudo o que você tiver em seu coração hoje, neste lugar. Perdoa. Se teve abuso sexual, perdoa. Se foi da família, perdoa”. Após a repercussão negativa, ela esclareceu que se referia a um “perdão bíblico”, de natureza espiritual, sem qualquer intenção de proteger os criminosos da Justiça. “Jamais defenderia abusadores de qualquer espécie.”
Ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves também alerta para a falta de profissionais capacitados no ambiente escolar. “Desde 2019, há uma lei que obriga a presença de psicólogos nas escolas. Na prática, isso não acontece. Cada um desses profissionais precisa atender dezenas de unidades. É impossível criar vínculo com as crianças e adolescentes, para que eles se sintam confiantes em verbalizar algum sofrimento.” O ideal, explica o advogado, seria que cada escola tivesse um espaço adequado para escuta, com uma equipe treinada para identificar sinais de abuso e mudanças de comportamento. Além disso, é essencial fortalecer a rede de denúncia. Pouquíssimas cidades contam com delegacias especializadas para crianças e adolescentes.
“Uma criança vítima de abuso apresenta mudanças. Em alguns casos, passa a ter medo de adultos ou do escuro. Se antes era muito falante, pode se tornar silenciosa. Também pode sofrer alterações no sono, dormindo pouco ou em excesso.” enumera Alves. Identificar esses sinais exige treinamento. No ano passado, a Câmara dos Deputados aprovou uma lei que estabelece protocolos de atendimento e capacitação para profissionais de áreas como educação, saúde, segurança pública e justiça. Trata-se do Estatuto da Vítima, de autoria do deputado Rui Falcão (PT), que agora está em análise no Senado. “Essa lei pode ser revolucionária, porque respeita os direitos da vítima em sua totalidade. É fundamental que a sociedade se mobilize para exigir sua aprovação”, afirma a promotora Celeste Santos.

Retrocesso. Mudança em súmula do STJ só favorece os predadores sexuais, alerta a promotora Celeste Santos – Imagem: Robson Foiadelli, Gustavo Lima/STJ e Denny Cesare/GOVSP
Outro ponto que preocupa os especialistas é um debate em curso no Superior Tribunal de Justiça. A Corte analisa o caso de um homem de 22 anos que manteve um relacionamento com uma menina de 13. Denunciado por estupro de vulnerável, ele foi absolvido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que levou em consideração o consentimento da vítima e dos pais dela. A decisão contraria uma súmula do STJ, que estabelece a “presunção absoluta de vulnerabilidade” para menores de 14 anos. Em outras palavras, qualquer relação sexual com uma criança ou adolescente abaixo dessa idade é considerada uma violência, pois a vítima não tem maturidade para consentir. “Muitos defensores tentam relativizar essa regra, questionando se a vítima era mesmo ‘inocente’ ou se já havia tido uma experiência sexual anterior. Se essa súmula for modificada, abre-se um perigoso precedente para livrar da cadeia uma legião de abusadores”, alerta Santos.
Não é tudo. Em caso de gravidez, essas meninas poderiam enfrentar dificuldades para acessar o aborto legal, permitido apenas nos casos de estupro, risco de vida para a gestante ou anencefalia do feto. Professora de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, Denise Auad vê com horror esse debate. “Não se pode naturalizar a maternidade infantil de forma alguma”, adverte.
Para a especialista, que também atua na área da infância, é compreensível que o Judiciário considere fatores atenuantes ou entenda que, em situações excepcionais, a norma possa ser relativizada. “O que não é razoável é transformar a exceção em regra. Obrigar uma menina a formar família, a ser responsável por um lar e pelo cuidado dos filhos, leva à submissão e, muitas vezes, à escravidão. Elas perdem totalmente a autonomia e são condenadas a repetir esse ciclo”, alerta Auad. Em casos como esse, a professora defende que também seja analisado o contexto familiar da vítima. “Há um discurso superficial em defesa da família no Brasil. Mas que família é essa que acolhe abusadores? A quem interessa?” •
Publicado na edição n° 1354 de CartaCapital, em 26 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Infância violada’