no Congresso em Foco

Infância e impunidade: Bolsonaro, Trump e os limites da Justiça

por Gisele Agnelli

Em entrevista com a Promotora Pública Helena Brasileiro.

Em 24 de julho de 2025, a 5ª Turma Cível do TJDFT condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro por dano moral coletivo. A decisão reconheceu que ele violou os direitos de crianças e adolescentes ao utilizar imagens de meninas venezuelanas em peça de campanha, incitar menores a fazerem gestos de arma e sexualizar adolescentes migrantes com frases como “bonitinhas” e “pintou um clima”. O tribunal fixou uma indenização de R$ 150 mil ao Fundo da Infância e da Adolescência e proibiu Bolsonaro de continuar a usar imagens de menores ou incitar violência simbólica contra crianças.

Trata-se de uma condenação civil, é verdade. A esfera penal segue, como sempre, arrastando os pés diante dos poderosos. Mas essa decisão marca um ponto de inflexão. Não por seu valor pecuniário, irrisório diante do sofrimento causado, mas por seu potencial simbólico. Pela primeira vez, o sistema de justiça se dispõe, ainda que timidamente, a colocar freios à violência discursiva de figuras públicas que instrumentalizam a infância.

Conversando com a promotora Helena Brasileiro, a sensação é de estar diante de uma mulher que não apenas estudou, mas viveu e moldou o direito da infância no Brasil. Com mais de três décadas de atuação e participação ativa na formulação do ECA, Helena entende como poucos que a infância é o lugar onde uma sociedade projeta, ou destrói, seu futuro. E para ela, a campanha de Bolsonaro operou uma regressão civilizatória: “Minar a infância é minar a democracia. É abrir brechas para o fascismo se instalar no cotidiano”.

Ela reconhece que a decisão pode ser revertida nos tribunais superiores, mas destaca algo crucial: a função normativa da sentença. Não se trata apenas de punir, mas de enunciar o inaceitável. “Mesmo que a multa caia, a frase ‘isso não pode já foi dita. E isso, no direito, tem um peso constitutivo. Passamos a nomear como lesão aquilo que antes era apenas naturalizado.” O julgamento, segundo ela, reconfigura a gramática da responsabilização pública no Brasil.

Helena é enfática: o dano não foi apenas individual, mas estrutural. “Quando um presidente sexualiza uma adolescente migrante, ele não agride só aquela menina: ele fere todo o arcabouço jurídico que protege a infância e reforça o imaginário colonial de que corpos racializados e pobres estão à disposição do poder”. Para ela, é essencial entender que o que está em jogo não é moralismo, mas soberania dos direitos humanos.

Apesar de sua longa trajetória no Ministério Público, Helena se identifica como abolicionista penal. E faz isso por análise histórica. Cita pesquisas que mostram que penas severas não reduzem a criminalidade e critica o uso simbólico da prisão como panaceia social. “O cárcere não transforma, só produz mais violência. E, ironicamente, jamais se aplica aos poderosos”, afirma. Para ela, a punição dos ‘monstros isolados como Epstein ou Ghislaine Maxwell não resolve o pacto de permissividade das elites, apenas dá a aparência de justiça.

Helena defende a responsabilização civil coletiva como estratégia pedagógica. A ideia é deslocar o foco do castigo para a reconstrução simbólica da norma violada. “Quando acionamos a lógica da responsabilização coletiva, não estamos dizendo ‘prisão já, estamos dizendo: isso foi um atentado ao nosso contrato civilizatório. E isso precisa ser nomeado, reparado, enfrentado”. A promotora também critica a ausência de políticas públicas estruturais para lidar com agressores. “Temos delegacias armadas, mas poucos programas de reeducação, de escuta, de reparação real. As medidas protetivas não alcançam a dimensão simbólica da violência. Enquanto isso, os discursos violentos seguem impunes, e celebrados”.

Para fazer um paralelo entre Bolsonaro e Trump e casos envolvendo crimes contra a infância, a coluna da pesquisadora Kristen Soltis Anderson, publicada no New York Times* descreve com precisão o abalo que o caso Epstein causa na base trumpista. Pela primeira vez, a blindagem simbólica do ex-presidente começa a trincar. Não é por ideologia, nem por economia. É pela quebra de um mito: o de que Trump é o outsider, o justiceiro anticorrupção, o inimigo do sistema. O caso Epstein é corrosivo porque revela o oposto. Trump não apenas fazia parte do sistema: ele era parte do pacto de silêncio entre elites, milionários, abusadores e celebridades. Quando diz que Epstein era apenas “chato” ou que “roubou funcionários de Mar-a-Lago”, ele não subestima só o trauma coletivo, ele trai sua própria narrativa.

E o Brasil? O bolsonarismo opera na mesma chave: a farsa do outsider. O “mito” contra os corruptos, contra o STF, contra os “globalistas”. Mas o que se vê é um Bolsonaro que: usou crianças em campanhas sem consentimento; sexualizou adolescentes venezuelanas e se aproximou de milicianos e pastores acusados de pedofilia.

Nos EUA, Trump já acumula condenações civis milionárias e a condenação moral em como está lidando ou “evitando” abrir os arquivos do caso Epstein estão se refletindo nas pesquisas de opinião e impactando negativamente a avaliação de Trump. No Brasil, Bolsonaro ainda é tratado com luvas. O sistema hesita em enfrentá-lo, teme as reações políticas, banaliza os danos. Como diz Helena: “Não falta prova. Falta coragem institucional”.

Trump e Bolsonaro alimentam-se da vitimização, da espetacularização e do confronto constante com as regras do jogo. Mas o caso Epstein representa um ponto fora da curva: envolve crianças, violência sexual sistemática, e fere o inconsciente moral até dos mais cúmplices. Bolsonaro e Trump não enfrentam o sistema. Eles são o sistema: machista, excludente, promotor de impunidade sexual e simbólica. Um sistema que transforma vítimas em alvos e algozes em mártires.

O caso Epstein desmonta a mitologia trumpista. Mostra que o herói anticorrupção era, na verdade, o arquétipo da própria promiscuidade institucional que fingia combater. No Brasil, o caso das meninas venezuelanas deveria cumprir esse papel. Mas ainda vivemos sob a chantagem do espetáculo. Bolsonaro não é perseguido, é privilegiado por um sistema cúmplice, tímido, indeciso. Como conclui Helena Brasileiro: “O verdadeiro ponto de ruptura não é jurídico, é ético. E, nesse ponto, já estamos muito atrasados”.

*NY Times, 1º de agosto de 2025

Gisele Agnelli – Socióloga com especialização em ciências políticas, graduada pela PUC-SP, pós-graduada em Marketing e em Gestão da Informação, ambos pela ESPM. Fundadora do #VoteNelas. Atualmente reside nos EUA e faz parte do Movimento de Lideranças Femininas do Partido Democrata, Hoosier Women Forward.

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Last Update: 04/08/2025