Desídia e procrastinação impulsionam tragédias

O Poder Público e a Escalada de Violência Contra Populações Indígenas

por João Silva — MAAR

A escalada de violência contra populações indígenas observada no Brasil nos últimos dias tem sido condicionada por fatores diversos, capitaneados pela influência política do poder econômico e agravados pela morosidade do poder judiciário, pela procrastinação e desídia do poder executivo, bem como pelo estado de necessidade a que se encontram expostas as comunidades ancestrais, devido à violação de seus direitos originários.

Apesar da histórica decisão proferida pelo STF no RE 1017365, que confirmou a total inconstitucionalidade do marco temporal, fato é que a Suprema Corte tem sido incapaz de garantir a efetividade dos direitos constitucionais dos povos indígenas, em face das reiteradas e abusivas medidas legisferantes implementadas pelas bancadas extremistas a soldo da usurpação predatória, as quais têm praticado graves afrontas aos princípios da legalidade, da moralidade e do estado democrático de direito.

A (im)postura predatória dos parlamentares ruralistas caracterizada na aprovação da lei 14.701/2023, que tenta impor a aplicação do marco temporal para impedir e inviabilizar a demarcação de terras indígenas, evidencia flagrante desrespeito à decisão do STF e às expressas garantias gravadas em cláusulas pétreas da Constituição Federal.

E tal (im)postura se mostra insustentável também na absurda tramitação da PEC48, que tenta impor a abusiva tese do marco temporal através de emenda à constituição, quando é de conhecimento notório a existência do dispositivo que proíbe, de modo expresso, a abolição de direitos fundamentais, nos termos do artigo 60, § 4º, IV, da Carta Magna.

Nesta medida, resta evidenciado que essa acintosa insistência lesiva de parlamentares asseclas da usurpação predatória atenta contra a ordem democrática, pois a aprovação da lei 14.701/2023, e a tramitação da PEC48, ferem o elementar princípio da harmonia entre os poderes da República, além de induzir a escalada de violência contra os povos indígenas e as comunidades tradicionais, conforme amplamente documentado.

A esdrúxula e danosa vigência da famigerada lei 14.701/2023 impulsiona a violência contra as comunidades indígenas de diversas maneiras, tanto por gerar expectativas de que a demarcação de inúmeros territórios tradicionais possa vir a ser inviabilizada e/ou revertida, quanto por tornar possível a indenização de “benfeitorias” realizadas depois de iniciado o procedimento demarcatório, bem como por estimular novas invasões de terras indígenas com a absurda garantia de exploração por não-indígenas até a conclusão dos processos de demarcação — que já duram décadas e se tornam ainda mais lentos.

Todo esse quadro de arbitrariedades praticadas contra os povos ancestrais evidencia à exaustão a necessidade de zelar pelo cogente respeito às normas constitucionais, através da imediata suspensão e urgente revogação da lei 14.701/2023, com vistas a preservar a eficácia e utilidade da decisão do STF proferida em sede de recurso repetitivo no âmbito do RE 1017365, de modo a obstar o prosseguimento da recorrente violação de direitos fundamentais das comunidades indígenas e coibir a escalada de violência criminosa que foi promovida por numerosos grupos armados a serviço da exploração predatória.

O embate judicial acerca dos direitos dos povos indígenas se tornou mais difícil e lento em decorrência da ADC 87, ajuizada pelos asseclas da exploração predatória com a vã e insidiosa formulação de pedido juridicamente impossível, e com o dissimulado objetivo deletério de impedir a garantia dos direitos originários das comunidades ancestrais.

A referida Ação Direta de Constitucionalidade configura uma manobra ilegítima, e foi ajuizada pelos ruralistas algumas horas antes do ajuizamento da ADI 7582, movida pelas organizações indígenas para argüir a inconstitucionalidade da lei 14.701/2023.

Por esta via, dado que a mencionada ADC 87 foi distribuída por sorteio para o ministro Gilmar Mendes, a ADI 7582 foi distribuída para o mesmo relator, tornado prevento pela conexão com o feito supra referenciado. Isso quando, a rigor, a ação que versa sobre a inconstitucionalidade da lei 14.701/2023 deveria ser distribuída para o ministro Edson Fachin, em face da prevenção decorrente da matéria, conexa com o RE 1017365, bem como do fato que a referida ADI tem função acessória em relação ao referido recurso, na medida em que a tutela almejada visa preservar a utilidade e eficácia da decisão que julgou inconstitucional a tese ruralista, no acórdão proferido em recurso repetitivo.

Todavia, a prioridade, neste momento, é a suspensão dos efeitos da lei 14.701/2023, que deve ser determinada por meio de tutela de urgência, com base no artigo 300 do CPC, em face da inegável evidência do direito pleiteado, amparada no acórdão que confirmou a inconstitucionalidade do marco temporal, bem como em razão do crescente perigo de danos para os povos indígenas e do patente risco de dano ao resultado útil do processo.

Por outro lado, diante da questionável, indesejável e inútil determinação de audiências de conciliação no âmbito da ADC 87, é dever concordar com a posição externada por organizações dos povos indígenas, por indigenistas e por instituições representativas, que asseveram firme repúdio a qualquer pretensão relativa a conciliação que implique na violação dos direitos constitucionais das comunidades tradicionais.

Neste sentido, uma alternativa muito recomendável é que os representantes dos povos indígenas expressem a defesa do pleno respeito às normas constitucionais e processuais, mediante urgente deferimento da tutela de urgência na ADI 7582, para suspender todos os efeitos da lei 14.701/2023, bem como com vistas ao célere indeferimento liminar da ADC 87, com a cogente coibição da predatória sanha legisferante, que atenta contra a ordem democrática e viola o princípio constitucional da harmonia entre os poderes.

Além disso, urge clamar pela mobilização das instituições democráticas representativas, assim como da mídia em geral, dos formadores de opinião, e de todos os segmentos progressistas da sociedade brasileira para cobrar atuação efetiva e agilidade do poder público, tendo em vista que a escalada de violência precisa ser interrompida. A situação é gravíssima e paradoxal, dado que a situação de extrema vulnerabilidade de diversas comunidades apartadas de seus territórios tem sido mantida em decorrência da desídia do governo federal em relação à inadiável demarcação das terras indígenas.

Tal desídia contrasta com o compromisso de campanha firmado pelo Presidente Lula, e se evidencia na perpetuada existência de dezenas de territórios com todos os estudos e formalidades legais já concluídas, as quais aguardam, há décadas, a homologação pelo governo federal, para que possam enfim ser demarcadas e protegidas. Assim, essa triste situação reforça tantas evidências de que a mobilização das instituições democráticas representativas deve desempenhar papel decisivo na condução do processo histórico.

Brasil, 05 de agosto de 2024.

Mario Ramos — MAAR.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Categorizado em:

Governo Lula,

Última Atualização: 12/08/2024