Na noite de 14 de dezembro de 2024, cerca de 135 índios guarani caiouá, trabalhadores sazonais na Fischer S/A Agroindústria, em Monte Carlo (Santa Catarina), foram alvos de repressão violenta e tortura pela Polícia Militar (PM) no estado. A denúncia foi publicada no último dia 15 pelo sítio Brasil de Fato, na reportagem ‘Não somos bicho’: indígenas denunciam PM e empresa Fischer, da maçã da Turma da Mônica, por tortura e omissão, assinada por Gabriela Moncau e Maria Helena de Pinho.
Oriundos do Mato Grosso do Sul, os índios trabalhavam no raleio de maçãs, quando foram vítimas de tortura, com uso de spray de pimenta, balas de borracha e cassetetes, além de algemas e deslocamento forçado. Na reportagem, os índios relatam que a ação deixou sequelas físicas e psicológicas, como fraturas, dificuldades respiratórias e traumas. Conhecida pela “maçã da Turma da Mônica”, a empresa e a PM alegam que a repressão foi resposta a uma “briga generalizada”, mas os camponeses afirmam que a violência atingiu até quem dormia.
Os guarani caiouá, majoritariamente da aldeia Taquaperi, em Coronel Sapucaia (MS), estavam em alojamentos da Fischer, onde trabalhavam desde outubro. Por volta das 21h, durante o momento de folga, uma briga entre dois índios da aldeia Pirajuí foi apartada.
O gerente da empresa, identificado como Edimar, chamou a Tropa de Choque, que chegou às 23h. Segundo os trabalhadores, os policiais jogaram spray de pimenta pelos corredores e janelas, forçando todos a saírem dos quartos. Ao deixarem os cômodos, foram agredidos.
Manoel (nome fictício) relata: “tossi, tossi, tossi. Não aguentava mais, quando abri a porta para sair, já não via. Apanhou de cassetete e bala de borracha. Primeiro bateu aqui, na segunda aqui, na terceira aqui. Na quarta perdi minhas forças. Caí”.
Ele desmaiou após as agressões.
Seis trabalhadores, incluindo Abelardo, de 18 anos, denunciam tortura. Algemados, foram levados a viaturas e deslocados para outro alojamento, a quilômetros de distância. Abelardo afirma: “chute, tapa na cara, eu não conseguia ver. Falei: ‘eu vou morrer’. Jogaram pimenta na minha boca. Levaram a gente para outro alojamento longe. De manhã eu ainda não conseguia olhar nem falar, chorava, pedia a Deus. Deixaram a gente trancado, como se fossemos criminosos. A gente era refém”.
João, outro trabalhador, diz: “não teve misericórdia. Até hoje não consigo comer normalmente”. No dia seguinte, os índios foram liberados, mas obrigados a caminhar cerca de 5 km até o alojamento original, ainda feridos.
Os trabalhadores relatam sequelas graves. Aureliano sofreu fratura no braço e não voltou a trabalhar. Outros enfrentam dificuldades para comer ou sentir o gosto dos alimentos devido ao spray de pimenta.
Nem a Fischer e nem órgãos públicos ofereceram atendimento médico ou custeio de remédios, segundo os índios. Eles também afirmam não terem recebido R$700 acordados por dias extras de trabalho, além de verbas rescisórias do FGTS.
Jorge, um dos “cabeçantes” que coordenam os grupos, diz: “tentei contato com o Edimar, mas ele não atende. Bloquearam nossos números”.
O cacique Samuel Velasquez, da Taquaperi, acionou a Funai e o Ministério Público Federal (MPF-MS) para garantir o retorno dos feridos, mas cobra indenizações: “muitos estão em tratamento, não conseguem trabalhar. Teve quem quebrou a clavícula, quase perdeu a visão, machucou perna, braço, costela”.
A PM de Santa Catarina, comandada por Jorginho Mello (PL), alega que foi chamada devido a uma “briga generalizada”. A nota oficial diz que o gerente informou que a situação estava controlada, mas a guarnição percebeu “gritos, algazarras e provocações entre as tribos”. Os militares afirmam que um índio empunhou arco e flecha e outro, um facão, o que levou ao uso de munição não letal.
Por sua vez, a Fischer sustenta que houve um “conflito entre trabalhadores”, que o Corpo de Bombeiros prestou atendimento e que os feridos, nenhum em estado grave, receberam cuidados médicos. A empresa nega abusos e diz que 21 trabalhadores voltaram para a colheita. Já a PM afirma que os bombeiros não encontraram feridos após a ação, contradizendo a versão da empresa.
A contratação dos guarani caiouá é intermediada pela Fundação do Trabalho de Mato Grosso do Sul (Funtrab) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT-MS). Em 2024, 1.483 índios do MS migraram para o raleio em SC e RS, com a Fischer recebendo a maior parte. O contrato prevê R$7,33 por hora, com salário bruto de R$1.172,80 por mês, abaixo do mínimo nacional (R$ 1.518). Com bônus, os índios recebem cerca de R$1.500 mensais. O cacique Velasquez critica: “não paga o que o trabalhador merece. É muito longe para ganhar pouco”. Desde 2009, denúncias de aliciamento clandestino de índios para o setor da maçã levaram o MPT-MS a regular as contratações, mas as condições permanecem precárias.
O procurador do MPT-MS Jeferson Pereira, porém, atribuiu problemas a “ruídos de comunicação” com índios “sem estudo” e cita o “acesso fácil à bebida” como fator de descontrole. Ele defende a Fischer, corroborando a versão da empresa de que teria prestado atendimento médico, mas não comenta a ação policial. A Secretaria de Segurança Pública de SC não se manifestou. A explicação da PM, que aponta “provocações entre tribos” e armas como justificativa, é uma farsa que reforça o caráter criminoso da instituição, incapaz de justificar a violência contra trabalhadores indefesos.