Os Estados Unidos até poderiam tentar explorar o discurso de Mark Zuckerberg em defesa da suposta liberdade de expressão no ambiente digital. Mas o banimento do TikTok esclareceu de uma vez por todas que as medidas anunciadas pela Meta tratam-se de uma série de providências que instrumentalizam o discurso da liberdade em nome de soberania, protecionismo e segurança.

Em 17 de janeiro, a Suprema Corte norte-americana decidiu o caso TikTok Inc. vs. Garland, que trata da constitucionalidade da Lei de Proteção de Americanos contra Aplicações Controladas por Adversários Estrangeiros. A decisão representa um marco importante na governança global da internet e provavelmente vai refletir em outros julgamentos ao redor do mundo. Uma implicação direta: o possível banimento do TikTok no país, salvo se suas operações forem desvinculadas – ao menos em parte – do controle chinês da ByteDance Ltd.

Apesar dos argumentos do TikTok e de seus usuários de que a lei viola a famigerada Primeira Emenda, a tratar da liberdade de expressão, a Suprema Corte concluiu que a legislação é constitucional, pois protege um interesse governamental legítimo ao prevenir o acesso de um adversário estrangeiro a dados como idade, localização, IP, dispositivos usados, contatos e número do telefone, mensagens privadas e conteúdos assistidos. Basicamente, tudo o que todas as redes sociais coletam por aí.

A decisão também afirma que, por mais que o governo chinês não acesse os dados, “pode se tornar impossível para as autoridades americanas detectarem isso”. Esse argumento demonstra que o governo americano, neste momento, reconhece sua incapacidade tecnológica para detectar vulnerabilidades e assume a dificuldade tecnológica do país de entender como o governo chinês estaria usando (ou não) os dados pessoais dos usuários norte-americanos.

Quando a China autorizou a manutenção das atividades da Apple no país, obrigou que a empresa instalasse seus servidores e data centers em seu território, ao invés de obrigar que a Apple vendesse seu controle para o governo.

O governo norte-americano protestou, mas não adiantou. A decisão garantiu a presença da Apple no mercado chinês e fez da China a maior fonte de receita da Apple no mundo, mas não apenas isso. Também demonstrou a disposição chinesa em construir mais capacidade tecnológica e proteção em relação aos dados dos chineses. Michael Waltz, assessor de Trump para assuntos digitais, também flertou com essa possibilidade e disse recentemente que uma das soluções para o caso TikTok é construir uma muralha digital para assegurar que os dados dos norte-americanos fiquem geolocalizados nos EUA. Talvez a China até possa ajudar.

O aspecto mais interessante deste caso é a postura dos Estados Unidos. Ao criticar outras nações sob o pretexto de “defesa da liberdade”, os EUA revelam uma contradição, especialmente quando se analisa o caso do TikTok. Essa atitude ganha contornos ainda mais hipócritas quando lembramos do caso Edward Snowden, que expôs a vasta rede de espionagem conduzida pelos EUA, incluindo a vigilância de cidadãos comuns e líderes políticos de países aliados, como Alemanha e Brasil.

Os Estados Unidos, que se colocam como os guardiões das liberdades individuais e da privacidade, se valeram de programas como o PRISM e do monitoramento de dados de gigantes de tecnologia ocidentais para consolidar seu poder no ambiente digital. Talvez por isso saibam dos riscos que o TikTok pode oferecer. Mas a indignação seletiva contra o TikTok, sob o argumento de que o aplicativo representa um risco à segurança nacional devido ao seu vínculo com o governo chinês, ignora que práticas semelhantes foram conduzidas por Washington em larga escala.

A tentativa de impor medidas coercitivas sobre uma empresa estrangeira também revela o uso da “liberdade” como arma política e econômica, em um jogo de dominação tecnológica e geopolítica. Enquanto pregam valores democráticos, os Estados Unidos mostram que estão dispostos a violá-los quando lhes convém, expondo uma hipocrisia estrutural em seu discurso de hegemonia global.

Donald Trump decidiu demonstrar que tudo pode ser negociado e anunciou, de maneira ainda confusa, que adiará a suspensão da plataforma e encontrará uma solução. Provavelmente uma joint-venture sino-americana. Os próximos capítulos ainda estão nebulosos.

Mas uma coisa é certa: a decisão da Suprema Corte e seus argumentos refletirão no resto do mundo e no Brasil. Ainda mais em um momento em que o STF julga a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet (Recurso Extraordinário 1037396 (Tema de Repercussão Geral 987).

A argumentação usada no julgamento da Corte norte-americana (cuja composição atual é de maioria republicana) no caso TikTok não difere muito da utilizada pela Suprema Corte brasileira. A decisão abre um precedente interessante: reforça a ideia de que todos os países do mundo têm legitimidade para defender sua Constituição e discutir o controle de aplicações seja regulando-as, seja limitando sua atuação para adequá-las ao jogo democrático.

Seguindo o raciocínio da decisão dos EUA, o Brasil e o STF podem se fortalecer no argumento da soberania e na necessidade de se exigir o mínimo: isso é, qualquer rede social que opere no território brasileiro deve submeter-se ao que prevê a nossa Constituição e, assim, apresentar soluções para segurança informacional e proteção dos usuários contra circulação de conteúdos ilícitos — ou também estará “convidada” a se retirar.

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Last Update: 23/01/2025