“A violência política de gênero não é exceção. É a regra”, lamentou a deputada federal Duda Salabert, do PDT, após vencer um processo movido contra o colega Nikolas Ferreira, do PL. Na quinta-feira 12, ele foi condenado pelo Superior Tribunal de Justiça a pagar uma indenização de 30 mil reais a Salabert, devido a um ataque transfóbico ocorrido em 2020, quando ambos eram vereadores em Belo Horizonte.
Nesse mesmo dia, em São Paulo, o vereador Gilberto Nascimento, também do PL, apresentou um relatório com informações falsas na tentativa de arquivar um pedido de cassação contra o correligionário Lucas Pavanato, acusado de transfobia pela vereadora Amanda Paschoal, do PSOL. Segundo especialistas, episódios como esses, protagonizados por autoridades, legitimam e alimentam a violência nas ruas. O Brasil, convém recordar, ocupa há 16 anos o topo do ranking mundial de assassinatos de pessoas trans.
O caso de Amanda Paschoal começou em fevereiro. Na primeira sessão ordinária da Câmara Municipal, Pavanato subiu à tribuna para provocar a colega: “Biologicamente, Vossa Excelência é homem”. O pedido de cassação, movido pela vereadora, foi analisado pela Corregedoria da Casa, que decidiu arquivar o processo. No entanto, o documento apresentado pelo relator, Gilberto Nascimento, continha uma série de informações falsas. Foi citada até mesmo uma jurisprudência inexistente.
O relatório afirma que Pavanato apenas exerceu sua liberdade de expressão e não reconhece a prática de transfobia. Para embasar a decisão, Nascimento citou dois casos ficcionais e um terceiro relacionado a um crime de homicídio, sem qualquer relação com a questão em debate. Bastou acessar os sistemas do Judiciário para verificar que os números de processos informados na peça não existiam ou estavam incompletos.
A assessoria do vereador Nascimento confirmou a existência de um “erro da equipe técnica”. Após a revelação da falcatrua, a sessão da Corregedoria foi suspensa e remarcada para o próximo dia 26, quando um novo relatório deve ser apresentado. A equipe de Pavanato acredita que “muito possivelmente isso decorreu do uso de Inteligência Artificial na busca pelos precedentes”. Para Paschoal, valer-se de uma ferramenta tecnológica para “inventar jurisprudências” foi o “cúmulo da falta de respeito com o próprio Parlamento, e com a seriedade que a Corregedoria deve ter”.
Mesmo com o vexame, Pavanato diz estar confiante no arquivamento do caso. “O processo é ridículo. Um ataque à prerrogativa parlamentar de discordar em termos técnicos, científicos e políticos”, justifica. Já Paschoal promete buscar a responsabilização do colega até a última instância possível, por acreditar que a naturalização desse tipo de violência “dá aval para a sociedade como um todo desrespeitar outras mulheres e homens travestis”.
Apenas em 2024, ao menos 124 pessoas trans foram assassinadas no País, outro recorde mundial, de acordo com a Antra, associação dedicada à promoção dos direitos dessa população. “O fascismo à brasileira, com toda a falência da nossa estrutura social, reforça essa violência”, avalia a deputada Salabert. “Quando figuras públicas atacam parlamentares LGBTQIA+, sinalizam que a nossa existência pode ser tratada como piada ou ameaça. E isso legitima outras formas de agressão, inclusive físicas.”
A secretária nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, Symmy Larrat, alerta que a violência institucional é uma “continuidade da violência já sofrida pela comunidade na ponta”. Ela atribui o fenômeno a dois fatores. Primeiro, ao discurso de ódio “propagado livremente e sem nenhum controle nas redes sociais”, muitas vezes incentivado por parlamentares com o objetivo de estimular o pânico moral e mobilizar o eleitorado. O segundo fator é o “incômodo” gerado, nos setores intolerantes da sociedade, pela chegada de travestis em espaços de poder. “A ignorância alimenta o preconceito e, quando chegamos a lugares de tamanha visibilidade, a sociedade começa a nos enxergar com respeito”, afirma.
Nikolas Ferreira terá de pagar indenização irrisória a Salabert. Em São Paulo, vereador falseou jurisprudência para tentar livrar Lucas Pavanato de cassação
O modus operandi da extrema-direita – e dos reacionários em geral – é o mesmo há muito tempo, observa a secretária do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. “Eles colocam em dúvida quem nós somos e constroem uma narrativa para gerar pânico moral nas pessoas”, diz. Após semear o medo, esses mesmos agentes se apresentam como defensores dos “valores da família cristã”. Para romper essa estrutura, o caminho passa pela educação e pelo combate à desinformação, acredita. Larrat denuncia, porém, que “o Brasil tem sido omisso nesse papel” e que “o Legislativo brasileiro não tem atuado no enfrentamento à propagação dos discursos de ódio”.
Um estudo da agência Diadorim mostra que a produção legislativa voltada a alimentar o pânico moral cresceu nos últimos anos no Brasil. De 2019 a 2024, foram protocolados 437 Projetos de Lei classificados como “anti-LGBTQIA+”. A maioria trata da proibição da chamada “ideologia de gênero” nas escolas, do uso de linguagem neutra e do acesso a banheiros públicos por pessoas trans. Para Toni Reis, presidente da Aliança Nacional LGBTI+, essa agenda estimula a violência. “Os parlamentares extremistas não espancam, não matam, mas afiam a faca e legitimam a LGBTfobia.”
Já a psicóloga Fernanda Faria, que atua na Casa 1 – espaço de acolhimento para jovens LGBTQIA+ expulsos de seus lares –, explica que as violências institucional e física são “formas diferentes de uma mesma lógica: a negação do outro”. Em ambos os casos há a intenção de “agir contra”, de “invalidar a existência”. “Quando o Pavanato usa um marcador biológico para desconsiderar a identidade da Amanda, é um exemplo claro dessa negação”, afirma. Para ela, o problema é grave porque, seja por meio da agressão física ou do discurso, o objetivo final é o mesmo.
Esse ambiente hostil, acrescenta a psicóloga, gera o chamado “estresse de minoria” – o sofrimento psíquico e a tensão contínua vivenciados por pessoas pertencentes a grupos historicamente marginalizados. “Surge das inúmeras barreiras sociais, julgamentos constantes e da possibilidade real de ser atacado ou violentado”, diz Faria. “Esse tipo de sofrimento não termina com o fim do expediente. Ele é contínuo e pode evoluir para quadros graves de transtornos psíquicos.” •
Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Imunidade irrestrita’