Há pouco mais de dois meses, participei de um evento sobre empreendedorismo negro no centro de São Paulo. Entre uma roda de conversa e outra, conheci pessoalmente a deputada federal Tabata Amaral. Jovem, articulada, de presença rápida e olhar inquieto, Tabata me transmitiu algo que, naquele momento, interpretei como genuíno: um desejo sincero de transformação social, ainda que mediado pelas estruturas já tão enrijecidas do sistema político brasileiro.

O encontro com Tabata foi direto e participativo. Quando ela abriu o debate com os participantes, aproveitei a oportunidade para encaminhar algumas questões. Fiz uma rápida análise sobre o cenário das eleições municipais de 2024, destacando a derrota do progressismo em diversas cidades do país, com especial ênfase em São Paulo. Atribuí parte dessa derrota à incapacidade histórica do campo democrático de construir uma relação sólida e confiável com os 40% de população negra que vive na cidade.

Embora eu tenha plena consciência da complexidade que envolve a conquista da confiança das populações periféricas, fui taxativo: sem a construção de organismos de base — sobretudo liderados por pretos, pobres e periféricos —, qualquer projeto político, por mais distante que pretenda mirar, será inevitavelmente frustrado pela força conservadora e da extrema-direita que hoje pauta grande parte da agenda pública.

Esperava uma interlocução mais aberta, talvez até um reconhecimento das limitações que apontei. No entanto, Tabata não falou a mesma língua. Ela optou por fazer a defesa dos projetos apresentados e aprovados na Câmara dos Deputados e, numa inteligência evasiva, se colocou numa posição defensiva, limitando-se a responder que “poderia ser cobrada pelos projetos que aprovou na Câmara”. Havia ali, em sua resposta, a marca de uma política que, mesmo bem-intencionada, parece ainda prisioneira de uma lógica institucional que dificulta a escuta real dos que estão fora dos espaços de poder.

Essa primeira experiência me deixou com uma sensação ambígua: de um lado, a admiração pela trajetória pessoal de Tabata; de outro, a inquietude diante da distância — ainda que não explícita — entre o discurso da renovação e as práticas de manutenção das estruturas tradicionais.

O segundo encontro que me mobiliza nesta reflexão aconteceu no último dia 24 de abril, na Fundação Fernando Henrique Cardoso, também no centro de São Paulo. Desta vez, o interlocutor foi o prefeito do Recife, João Campos. Filho de uma linhagem política poderosa, João é, em muitos sentidos, a síntese do que a política brasileira tem produzido em sua versão mais “modernizada”: jovem, de fala rápida, estrategicamente carismático e, ao mesmo tempo, profundamente alinhado a uma visão tecnocrática de gestão pública.

Ele fez um balanço do seu mandato, ressaltando com orgulho ser o prefeito eleito e reeleito com ampla vantagem de votos, além de destacar o fato de ser o prefeito mais jovem do país. Seu discurso, seguro e bem calculado, reforçava a imagem de um gestor eficiente e dinâmico, preocupado com a imagem de modernidade que tanto agrada ao eleitorado urbano e pragmático.

No entanto, ao ser questionado sobre como trataria as pautas identitárias, João revelou um posicionamento que explicitou os limites de sua visão política. Com clareza desconcertante, afirmou que “são teses que atrapalham o desenvolvimento socioeconômico do País”. Em sua avaliação, para que essas teses se transformem em políticas públicas, seria necessário, primeiro, que as pessoas que as defendem “queiram” — uma formulação vaga que, no fundo, deslegitimava a própria relevância das lutas sociais e raciais.

Essa crítica às pautas identitárias escamoteia o fato de que a desigualdade no Brasil é profundamente racializada. Ao tratar essas pautas como “entraves” ao desenvolvimento, o discurso se aproxima perigosamente de um universalismo que, na prática, ignora as diferenças estruturais que moldam a vida de milhões de brasileiros. Tal abordagem acaba funcionando como uma forma de assistencialismo tecnocrático: presume-se que políticas públicas ditas “universais”, como a educação, atendam igualmente a todos – quando, na verdade seguem reproduzindo desigualdades, já que não reconhecem as desigualdades de partida.

Mais ainda: ao afirmar que a transformação dessas pautas em políticas depende da presença de seus defensores em cargos de poder, desconsidera-se a profunda assimetria do próprio sistema político. Como podem essas vozes conquistar representação se as vias institucionais (partidos, fundos públicos, tempo de TV, financiamento) seguem controladas por elites que historicamente excluem mulheres, pessoas pretas, indígenas, pessoas trans e trabalhadores periféricos? A democracia representativa, nesse contexto, não apenas limita, mas bloqueia a entrada desses grupos, tornando ilusória a expectativa de que só chegarão ao poder aqueles que “lutarem mais”.

Enquanto Tabata parecia tentar equilibrar o idealismo com a realidade do parlamento, João me deu a impressão de alguém que já desistiu de idealismos há muito tempo. Sua política é a política da gestão — da mesma forma que se administra uma empresa, calculando custos, riscos e lucros. Não que essa abordagem seja desdenhável: em tempos de descrédito nas instituições, ser eficiente é um trunfo. Mas me perguntei, ao sair dali: de que serve a eficiência se ela não está a serviço da transformação das estruturas que geram a desigualdade?

Ambos os encontros, cada um a seu modo, me lançaram à mesma inquietação: a política, enquanto arte da transformação coletiva, parece ter se tornado cada vez mais a arte da adaptação individual. Tanto Tabata quanto João, ainda que jovens, talentosos e comprometidos a seu modo, reproduzem uma dinâmica em que a aposta na mudança estrutural é substituída pela gestão de danos.

Em um país atravessado por tantas injustiças históricas, será que podemos nos dar ao luxo de apenas administrar o presente? Ou será que precisamos, ainda que em minoria, insistir na construção lenta e paciente de organismos de base, na formação de lideranças negras, pobres e periféricas, que possam não apenas participar, mas refundar as bases da democracia brasileira?

Saí desses dois encontros sem respostas definitivas, mas com a firme convicção de que é preciso manter a crítica viva. Pois, como dizia Paulo Freire, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, tampouco a sociedade muda sem ela”. Talvez o mesmo valha para a política: sem base, sem povo organizado, sem novos sujeitos históricos emergindo das periferias, qualquer promessa de renovação será apenas a velha história contada com novos rostos e novas palavras.

 

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Last Update: 06/05/2025