Vejo muitas vezes pessoas exaltando os progressos da medicina e se espantando ao pensar como a humanidade foi capaz de sobreviver sem eles. Citam os antibióticos, as ultrassonografias, as cirurgias e a vacinação em massa, dando a entender que só sobrevivemos por causa desses tantos avanços tecnológicos. Entretanto, a própria ciência reconhece que o impacto (não confundir com a eficiência) dessas novidades (todas elas surgidas a pouco mais de um século) na atenção à saúde foi diminuto. O aparecimento dos antibióticos, das vacinas e dos diagnósticos por imagem não foi produziu resultados significativos para a saúde global. Em verdade, o impacto real nunca ocorre por meio da ciência médica, mas da engenharia e da política: muito mais significativos para a saúde foram o saneamento básico, o transporte público, as janelas nas paredes, ventilação nas casas, roupa limpa, trabalho digno, limpeza urbana, higiene pessoal, serviço social, ar respirável, comida saudável e água limpa. A medicina, sem dúvida alguma, salva muitas vidas, e controla doenças que, antigamente, seriam inexoravelmente fatais. Todavia, seu impacto na saúde global humana é tímido.

A tuberculose e a Revolução Industrial tiveram uma relação complexa e profunda. A industrialização, que trouxe em seu bojo a urbanização e aglomeração de trabalhadores em ambientes insalubres e superlotados, contribuiu para a proliferação da doença, que se tornou um dos maiores problemas de saúde pública da época, conhecida como “peste branca”. Esta doença é um exemplo clássico: grande flagelo europeu dos séculos XVIII e XIX, ela teve uma queda brusca na sua mortalidade a partir da aplicação das leis trabalhistas que limitavam as horas trabalhadas, em especial nos porões de navios e no porto de Londres. Quando a estreptomicina começou a ser implementada, o número de pacientes graves já havia diminuído em mais de 90%. Segundo o pesquisador Frost, “nada teve mais influência sobre o declínio da tuberculose que a progressiva melhoria na ordem social” e que “um dos aspectos mais essenciais no efetivo controle da doença é a melhoria do padrão de vida dos estratos econômicos mais baixos”. Ou seja: o real impacto veio por meio da regulamentação rígida das relações de trabalho, a alimentação adequada e sobre a insalubridade da vida dos operários. Os antibióticos vieram muito depois, mas ganharam fama porque, com isso, seria possível vender remédios e fazer girar a roda da fortuna do capitalismo. E, percebam: não afirmo que os antibióticos sejam “inúteis” (apesar de serem perigosos); pelo contrário, salvam vidas e são indispensáveis no tratamento de pacientes gravemente enfermos. Entretanto, sua ação é multiplicada pela propaganda; o real efeito positivo para a saúde das populações vem das transformações sociais que ocorrem em função das lutas sociais.

Outra constatação: de todas as descobertas da área médica do século XX, a mais impactante foi a descoberta do aumento de absorção de água pelo túbulo distal do intestino quando, em uma solução salina, se acrescenta uma pequena quantidade de glicose. Para quem é atento, estou apenas descrevendo algo banal: o soro caseiro. Entretanto, essa descoberta foi brutalmente impactante, capaz de salvar milhões de crianças em África, vítimas de disenteria e outras doenças causadas pela água contaminada ou não tratada. Ou seja, o uso deste tratamento causou até um resultado demográfico, aumentando a expectativa de vida, e foi superior a qualquer novidade da medicina surgida na mesma época.

Em resumo, a tecnologia de medicamentos e equipamentos aplicada à medicina tem valor e preserva vidas, mas sua ação é muito menor do que as medidas sociais, políticas e estruturais que, neste caso, podem fazer revoluções significativas na sobrevida, no bem-estar, na longevidade e na saúde das populações. É essencial ter boas noções de epidemiologia ao tentar avaliar o real impacto da Medicina na saúde. Talvez um bom começo seja lendo Ivan Illich e “A Expropriação da Saúde – Nêmesis da Medicina”. Como pode ser visto na “Encyclopædia Britannica”, “As visões de Illich sobre a classe médica, expostas em Medical Nemesis: The Expropriation of Health (1975), eram igualmente radicais. Ele contestava a noção de que a medicina moderna havia levado a uma redução geral do sofrimento humano e afirmava que a humanidade era, de fato, afligida por um número cada vez maior de doenças causadas por intervenções médicas. Além disso, argumentava que a medicina moderna, ao parecer oferecer curas para quase todas as condições — incluindo muitas que não haviam sido consideradas patológicas pelas gerações anteriores —, criava uma falsa esperança de que todo sofrimento pudesse ser evitado. O efeito, concluiu ele, era minar os recursos individuais e comunitários dos humanos para lidar com as inevitáveis ​​dificuldades da vida, transformando-os, assim, em consumidores passivos de serviços médicos.”

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Last Update: 10/05/2025