Hugo, de 3 anos de idade, acordou cedo em 10 de abril, uma quinta-feira, e foi até a cozinha. Encontrou só a mãe, a deputada Sâmia Bomfim, do PSOL paulista. “Ué, cadê o papai?”, quis saber. Glauber Braga, deputado pelo mesmo partido, tinha passado a noite na sala do Conselho de Ética da Câmara. Na sessão realizada na véspera, entre 11h58 e 18h30, havia sido cassado no conselho por quebra de decoro. A última vez que comera algo tinha sido na noite do dia 8: sorvete. O parlamentar não costuma tomar café da manhã, daí ter ido de barriga vazia para o Congresso no dia da degola, que ainda precisa da palavra final do plenário. “Quem imaginou que utilizaria deste episódio para que eu pudesse ser um cadáver político ou um zumbi”, afirmou na sessão do conselho, “não sabia, ou não sabe, da minha convicção”. E prosseguiu: “A partir do dia de hoje, eu vou permanecer aqui neste plenário. E quem quiser chamar de greve de fome chame de greve de fome ou chame como queira”.

Até a manhã da quarta-feira 16, dia da conclusão desta reportagem, Braga havia perdido 4 quilos, após uma semana à base de soro, água, isotônico e água de coco. O anúncio do jejum surpreendeu até a companheira. Ele discutira a ideia com os assessores em dias anteriores. Estava convencido de que, para tentar salvar o mandato e escapar de oito anos fora das urnas, era necessário um gesto radical. Por trás de sua desgraça está o influente deputado alagoano Arthur Lira, que comandou a Câmara por quatro anos, até fevereiro. De início, Braga descartara a greve, por causa do filho. A opção impôs-se no calor da hora. Até a terça-feira 15, Hugo não sabia da circunstância real. Sâmia, que visita o marido no bunker diariamente, tem dito ao filho que o pai precisa dormir no trabalho por causa de um protesto, conceito do qual o garoto tem noção graças ao ambiente familiar.

“Você que não me conhece pode dizer: ‘Tá querendo aparecer’. E é isso mesmo. O que está acontecendo aqui precisa aparecer”, afirmou o deputado em um vídeo gravado no plenário convertido em bunker e exibido no Instagram. O calendário não favoreceu a causa. A semana da Páscoa esvaziou o Congresso, como de costume. Se há parlamentar de fora das relações, e do campo político, do combativo psolista que se sente constrangido pelo apuro do colega, não tinha visto nada de perto. No máximo, esbarrado em notícias sobre gestos públicos em favor do deputado, sobre a romaria no bunker. As condições de saúde, as visitas e os gestos de solidariedade são anunciados pela equipe do deputado por meio de notas públicas divulgadas de manhã e à noite.

Lira colocou um alvo na testa de Braga. O ator Marco Nanini fez questão de apoiar o psolista – Imagem: Kayo Magalhães/Agência Câmara e Marina Ramos/Agência Câmara

Um culto ecumênico foi realizado na Câmara, idem um ato com estudantes e uma roda de samba (neste caso, do lado de fora do prédio). Os cantores Chico Buarque, Daniela Mercury, Evandro Mesquita, Leoni e Teresa Cristina manifestaram-se nas redes sociais em defesa do deputado. Os atores Elizabeth Savalla, Júlia Lemmertz, Lucélia Santos e Paulo Betti gravaram um vídeo em apoio. O ator Marco Nanini esteve em Brasília com uma peça de 3 a 13 de abril e visitou ­duas vezes o psolista, a primeira no dia da cassação e a segunda, durante a greve de fome. No fim de uma das encenações de seu espetáculo, comentou com a plateia: “Cada um aqui, claro, tem suas convicções políticas, mas não posso deixar de manifestar todo meu apoio ao deputado Glauber Braga. Ontem, numa clara perseguição política, um vergonhoso Conselho de Ética da Câmara dos Deputados votou para a cassação do seu mandato”.

O psolista evita esforços físicos e dar entrevistas, para poupar energia. Recomendação médica. Logo após o início da greve de fome, uma médica mineira amiga, e também ex-deputada pelo PT de Brasília, procurou-o. Maria José da Conceição, a Maninha, de 76 anos, montou uma equipe de voluntários com cinco médicos, para um rodízio de avaliações diárias do deputado. Por sugestão dessa equipe, Braga passou a tomar soro e submeter-se a medições da pressão, da glicemia e do tônus da pele (pista sobre hidratação orgânica). Os voluntários também querem monitorar o risco de diarreia e ficam de olho nos chamados sintomas de alerta. Esses, basicamente, dão indicações sobre a capacidade cognitiva. “Até agora o Glauber está bem. É jovem e não tem patologia. Ainda aguenta uns bons dias”, afirmou Maninha às 12h30 da terça-feira 15. Quanto dias? “Se fosse idoso, a partir do décimo dia começaria a preocupar.”

Em 12 de abril, Braga declarou numa das notas diárias: “Estou bem. Um pouco mais abalado, mas estou bem”. Foi o primeiro sinal de que a barra pesava. O deputado teve enjoo, quadro que pirou três dias depois. Os médicos recomendaram o uso de máscara facial para ele e para quem se aproximasse. A falta de alimentação deixa-o debilitado e vulnerável a infecções virais, por exemplo. “Desculpa não dar atenção a vocês”, disse ele, ao voltar do banheiro, a uns apoiadores e curiosos na porta do bunker. “É que estou sendo enquadrado pelo pessoal (da equipe médica)”, completou, com ironia. Além da máscara, o psolista vestia um conjunto de moletom marrom-escuro e um sapato social preto. A irmã Ivana, de 47 anos, e o pai Roberto, de 82, foram a Brasília apoiá-lo. Idem Antônia Bomfim, mãe de Sâmia, que dá assistência ao neto.

“Considero uma decisão muito injusta, desproporcional”, declarou a ministra Gleisi Hoffmann

Quando Hugo foi ao bunker pela primeira vez, achou que a cama improvisada do pai era uma casinha e quis brincar. O parlamentar tem dormido em um colchão providenciado por simpatizantes e colocado num dos cantos da sala. É onde recebe as visitas. As conversas começam, em geral, por seu ânimo e saúde. “Senti ele ponderado”, disse o defensor público-geral da União, Leonardo Cardoso de Magalhães. “Ele está vigilante”, afirmou Mauro Utida, jornalista da Mídia Ninja, ao conhecer o Congresso e o bunker. Este tem 80 lugares, incluídos assentos para deputados e o público. Na segunda-feira 14, um funcionário da Câmara passou o aspirador no carpete verde mesmo com Braga dentro.

Na sala, há sempre água e café, servidos por funcionários da Câmara. O deputado não toma café, a bebida não chega a ser uma tentação. Os integrantes de seu gabinete que frequentam o local combinaram de ninguém comer por perto, para não instigar o apetite do chefe. Seis ministros foram ao psolista na primeira semana da greve de fome, três do Palácio do Planalto: Gleisi Hoffmann, da Coordenação Política, Sidônio Palmeira, da Comunicação, e Márcio Macedo, secretário-geral da Presidência. Os outros foram Cida Gonçalves, das Mulheres, Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos, e Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrário. “Viemos prestar solidariedade”, declarou Palmeira após o encontro. “É mais uma luta dele, ele é sempre determinado.”

A entrada de Palmeira e Gleisi na Câmara foi tumultuada. Era um sábado, o acesso dependia de aval prévio. A polícia legislativa implicou com os ministros, repetiriam a dose no dia seguinte, quando crianças da escola de Hugo foram até o parlamentar. A dupla palaciana estava acompanhada do líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias, que viabilizou o acesso. “Considero uma decisão muito injusta, desproporcional”, disse ­Gleisi, sobre a posição do Conselho de Ética. Há inúmeros casos, antigos e recentes, de deputados que agrediram alguém, inclusive colegas, e não perderam o mandato. Braga sofreria um castigo raro, a pretexto de um episódio que completa um ano.

Brazão, acusado de mandar matar Marielle Franco, ainda não foi cassado. O conselho vetou o depoimento de Jullyene Lins, ex de Lira – Imagem: Acervo/Agência Câmara e Redes Sociais

Em 16 de abril de 2024, o parlamentar envolveu-se em um incidente em uma das portarias das Câmara. Bateu boca com um sujeito chamado Gabriel Costenaro. Disse que não se deixaria intimidar e que o interlocutor era dado a violência doméstica. Ouviu que era “burro” e que a mãe era “corrupta”. Ex-prefeita de Nova Friburgo, cidade de 190 mil habitantes no Rio de Janeiro, Saudade Braga sofre de Alzheimer. Morreria em três semanas. Braga botou Costenaro para fora da Câmara com empurrões e pontapés. O partido Novo, ao qual Costenaro é filiado, pediu a cabeça do deputado no Conselho de Ética em seguida.

O provocador tem 32 anos, é alto e magro, de olhar raivoso e cara de poucos amigos. Nasceu em Nova Iguaçu, cidade da Baixada Fluminense. Pertence a um grupo linha-auxiliar do MBL, aquele movimento direitista. Tem 880 mil seguidores somados no YouTube, Instagram e X. Nessas redes, faz política e ganha dinheiro. Como todo militante de direita sabe, brigar e xingar são a receita do sucesso de vídeos online. Costenaro esmera-se no papel. Intitula-se “o inimigo da esquerda”, outra fórmula de ibope. Concorreu a vereador na cidade do Rio de Janeiro em 2024 e explorou o episódio com Braga na campanha. Teve 12 mil votos. Para eleger-se, precisava de 15,2 mil.

Na antevéspera do pleito, foi provocar o deputado durante uma panfletagem no Centro do Rio ao lado de uma candidata a vereadora pelo PSOL, Clarice Chacon. Encerrada a campanha, um assessor parlamentar de Braga, Fábio Gripp da Costa, responsável pelas agendas do parlamentar, mapeou as postagens de Costenaro sobre o psolista na web. Achou 32, das quais 11 no período da eleição. Fez ainda um levantamento das aparições de Costenaro em atos de Braga no Rio. O deputado costuma fazer “rodas de conversa” no Largo da Carioca às segundas-feiras. Gripp identificou sete aparições. Numa delas, em 18 de março de 2024, cerca de um mês antes do entrevero na Câmara, o assessor diz ter sido ameaçado por Costenaro. E que registrou em um boletim de ocorrência. “É, Fábio, você sabe que eu já sei tudo da sua vida: o nome da sua família, da sua mãe, onde moram”, teria ouvido de Costanero.

Nikolas Ferreira ligou para Bolsonaro durante a reunião no conselho – Imagem: Redes Sociais

Gripp descreveu esses fatos ao depor como testemunha de defesa de Braga no Conselho de Ética em 27 de novembro de 2024. Costanero tinha sido ouvido em 30 de outubro, ocasião em que aliados do deputado trouxeram à baila mais acontecimentos policiais. Sâmia perguntou-lhe sobre uma mensagem em um grupo de WhatsApp: “Você é uma vagabunda traidora que parece uma cadela no cio, que sai transando por favores com o primeiro verme que aparece”. Era um comentário de Costenaro a propósito de uma ex-namorada. “Crime de difamação”, disse Sâmia, forma de violência contra a mulher. Há ainda um inquérito da Polícia Federal contra o militante direitista por importunar a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. O último caso dizia respeito a uma invasão à Universidade Federal do Paraná, da qual o integrante do sub-MBL participou e que resultou na agressão a quatro mulheres.

O provocador é só um pretexto para a investida contra Braga. A força por trás do calvário do psolista é outra. Em 31 de maio de 2021, o deputado disse ao então presidente da Câmara: “Sr. Arthur Lira, eu queria saber se o senhor não tem vergonha”. Lira respondeu: “Vergonha eu tenho de dizer que Vossa Excelência faz parte desse colegiado. E se puder não ter a sua companhia na próxima legislatura, eu ficarei mais feliz”. Significa que é restrito ao trato pessoal? Sim, mas não só.

Braga atormenta Lira com acusações de mau uso de verba pública de emendas parlamentares, e seu partido faz o mesmo. A explosão de verba para indicações orçamentárias de parlamentares em uma década é uma das razões para o poder do alagoano e do “Centrão”. Em 2021, o PSOL recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra o “orçamento secreto”. Por causa da ação, a Corte decretou a morte dos “segredos” em 2022. Também a partir dela, Flávio Dino iniciou uma cruzada moralizadora das emendas em 2024. Em agosto passado, o PSOL voltou ao STF, contra qualquer emenda impositiva. Quatro meses depois, pediu ao tribunal que brecasse uma manobra de Lira para driblar a Corte e liberar 4,2 bilhões de reais aos colegas. Como desdobramento do questionamento do partido, a Polícia Federal abriu um inquérito. Braga foi ouvido e deu à PF o caminho das pedras até Lira: emendas para a cidade alagoana de Rio Largo, reduto eleitoral do ex-presidente da Câmara.

O PSOL é responsável pelo cerco do STF e da Polícia Federal à farra do orçamento secreto. Braga paga o preço

O psolista queria que o Conselho de Ética ouvisse testemunhas sobre o que significa ser perseguido por Lira, entre eles Eduardo Moreira, dono do ICL Notícias, e o youtuber Felipe Neto. Tanto o ICL quanto Neto foram censurados judicialmente por força de Lira. Outra testemunha pedida foi Jullyene Lins, ex-mulher do deputado alagoano. Jullyene acusa o pepista de violência doméstica e estupro. Comenta-se no Congresso que Lira ficou furioso com a tentativa de dar palco à ex-mulher. O relator do processo no Conselho de Ética, Paulo Magalhães, do PSD da Bahia, rejeitou interrogá-la. Magalhães é ele próprio um caso de agressão impune. Em 2001, deu um soco em um escritor que havia publicado um livro contra seu tio, Antônio Carlos Magalhães, o ACM, senador falecido em 2007.

Magalhães entregou seu relatório no conselho em 20 de dezembro passado, último dia de serviço do Congresso. Quando o Legislativo reabrisse, em fevereiro, seria para escolher os novos chefes da Câmara e do Senado. Comenta-se nos bastidores que o baiano precisava mostrar a Lira que a missão anti-Glauber estava cumprida. O sucessor do alagoano no comando da Câmara, Hugo Motta, do Republicanos da Paraíba, tem cumprido sua parte no script. Permitiu o prolongamento da sessão do conselho que cassou Braga até quase as 7 da noite. Ele costuma iniciar as reuniões plenárias às 4 da tarde e, com estas em curso, as comissões param. Sem essa licenciosidade, o julgamento no Conselho de Ética só seria concluído após o feriado. A quem o sondou nos últimos dias sobre o caso deu sinais de que não irá contra quem o botou na cadeira de presidente: Lira. À líder do PSOL, Talíria Petrone, afirmou que não tinha o que fazer, dadas as inimizades do psolista. Viajou para o exterior em 10 de abril e só voltaria a Brasília após a Páscoa. A chefe de seu gabinete de presidente foi ao bunker do psolista um dia depois dar uma espiada na situação.

Motta fez chegar ao PSOL que topa colocar em votação plenária a cassação do deputado Chiquinho Brazão, do Rio, acusado de mandar matar Marielle Franco, vereadora psolista. Brazão foi degolado no Conselho de Ética em agosto passado, e Lira nunca levou o caso ao plenário. Não se trata de acalmar o PSOL com uma cassação compensatória. Segundo um ­deputado do PT, a intenção é não cassar ninguém: livrar Braga em troca da salvação de Brazão. Sâmia Bomfim diz ser inaceitável juntar os dois casos numa negociação.

Os bolsonaristas querem dar o troco pela cassação de Silveira. Costenaro não passa de um provocador barato – Imagem: Redes Sociais/PTB na Câmara e Lula Marques/Agência Brasil

O bolsonarismo mais radical está com Lira. Quer chutar o psolista para dar o troco na esquerda pela desgraça de Daniel Silveira, ex-deputado condenado pelo Supremo em 2022 a oito anos de prisão, da qual saiu em liberdade condicional em dezembro passado. Vários deputados falaram abertamente sobre a vingança na tribuna da Câmara, entre eles Bino Nunes, do Rio Grande do Sul, José Medeiros, de Mato Grosso, e Luiz Lima, do Rio, todos dos PL. Jair Bolsonaro assistiu, a distância, parte da sessão do Conselho de Ética que enforcou Braga, por meio de uma ligação em vídeo com o deputado Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais. Um colaborador de deputados do PSOL vê algo de irracional por trás da gana do capitão. O sujeito da facada no capitão em 2018, Adélio Bispo, tinha sido filiado à legenda de esquerda.

Braga angariou, no entanto, simpatizantes nas trincheiras inimigas. O pastor Silas Malafaia é contra a cassação. Xingou-o no ex-Twitter, mas defendeu o mandato. O líder do PL, Sóstenes Cavalcante, evangélico, acha que o psolista merece no máximo seis meses de gancho. Deu a declaração em uma entrevista. No Senado, Cleitinho, do PL de Minas, disse da tribuna que o psolista “ficou nervoso” e “errou”, “mas cassar o mandato?” A colega Soraya Thronicke, do Podemos de Mato Grosso do Sul, que não chega a ser bolsonarista, assinou uma petição online a favor do parlamentar. Até a manhã da quarta-feira 16, o documento tinha 152 mil adesões.

“A cassação é uma ação coordenada e só vai ser revertida se houver uma reação coordenada”, disse à reportagem o deputado Jorge Solla, do PT da Bahia, após visitar o psolista no bunker. Por reação “coordenada”, presume-se que o governo teria de entrar em campo. A visita da ministra Gleisi a Braga é uma pista sobre de que lado está a simpatia do Planalto. Uma inclinação de forte conteúdo simbólico: o combativo deputado é daquela ala do PSOL que acha o partido lulista demais e o governo, esquerdista de menos. Braga, recorde-se, deu um dos votos mais emocionantes em defesa de Dilma Rousseff na época do ­impeachment. Gleisi havia sido ministra de Dilma. O psolista chamou de “gângster” o então presidente da Câmara, ­Eduardo Cunha, espécie de mentor de Lira. •

Publicado na edição n° 1358 de CartaCapital, em 23 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Imolado’

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 16/04/2025