Passada mais de uma década da Lei das Cotas, fruto da luta dos movimentos negros e sociais pelo acesso ao ensino superior e propulsora da produção de outros saberes e representações na universidade, as críticas à iconografia colonial brasileira foram não apenas absorvidas por artistas e instituições museológicas do País, como também se tornaram um discurso dominante nos meios culturais.

Não chega a surpreender, portanto, que passem a surgir também estudos voltados a matizar as críticas feitas aos artistas viajantes do século XIX e, em especial, aos dois mais destacados dentre eles: o francês Jean-Baptist Debret e o alemão Johann Moritz Rugendas.

Ao longo dos 15 anos em que viveu no Rio de Janeiro, Debret produziu mais de 800 desenhos e aquarelas que entram nas 152 pranchas litografadas que compõem os três tomos de Viagem. No primeiro, ele mostra os indígenas; no segundo, apesenta uma breve história do Brasil; no terceiro, descreve as elites.

Em Rever Debret: Colônia – Ateliê – Nação, Jacques Leenhardt, diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, defende que o artista, para além de ter retratado o que a Corte portuguesa desejava ver, expôs imagens “desagradáveis ou mesmo violentamente chocantes”.

A terceira edição de Rugendas e o Brasil, de Pablo Diener e Maria de Fátima Costa, procura enfatizar o caráter científico das obras produzidas pelo alemão durante suas temporadas no País – de 1821 a 1824 e, depois, em 1845.

“Esses artistas eram eurocêntricos e tinham, sim, um olhar de superioridade. Mas, da perspectiva da época, nem poderia ser diferente”, diz Pablo Diener, doutor em História da Arte pela Universidade de Zurique e professor aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso, ecoando outra obra lançada recentemente aqui, As Invasões Bárbaras: Uma Genealogia da História da Arte, de Éric Michaud.

Diener considera importante que não se perca de vista que esses artistas surgiram no contexto de gestação do nacionalismo europeu.

Plasticidade. Rugendas buscou, de acordo com quem o estuda, fazer um inventário visual e científico do Brasil – Imagem: Pintura “Paisagem na floresta tropical brasileira” de Johann Moritz Rugendas

“Naquele momento, estavam sendo configuradas as nações e esses viajantes estão imbuídos desse espírito. Eles procuram registrar as diferenciações nacionais e regionais”, diz o professor. “Hoje, todos nós que estudamos os artistas viajantes, temos de reavaliar, inclusive, o vocabulário, a forma de tratar negros e indígenas. Mas não podemos desconsiderar que estamos falando de algo feito 200 anos atrás.”

Leenhardt, em seu ensaio, não apenas busca contextualizar a produção de Debret como também se propõe a dar outras nuances à sua biografia e ao seu lugar de simples cortesão.

Membro da Missão Artística Francesa de 1816, ele estava oficialmente a serviço da monarquia. Mas o autor prefere ver nele um francês recém-chegado que perambula pelas ruas cariocas pasmado diante da cena política e social. Para Leenhardt, ao retratar, por exemplo, a destreza dos africanos em atividades artesanais, Debret “fustiga os preconceitos dominantes em seu tempo”.

O pesquisador defende ainda que a Viagem escapa da “voga de obras ao gosto do exotismo” e consegue “dar fisionomia” a pessoas que o sistema escravagista tendia a invisibilizar, expondo homens escravizados torturados ou carregando pesadas cargas. O artista, além disso, teria criado a “noção de floresta-violência”.

Não por acaso, relata ele, a Biblioteca Imperial recusou-se a aceitar o tomo que retrata a escravidão – ao contrário do que aconteceu aos outros volumes. Duas pinturas teriam incomodado especialmente o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, responsável pela emissão do parecer: Mercado da Rua do Valongo e Feitores Castigando Negros.

“Rejeitado pelas autoridades intelectuais brasileiras, a Viagem não ingressará na memória brasileira – ao menos não antes que a abolição da escravidão seja definitiva”, escreve Leenhardt. Mas, quando ingressou, especialmente no início do século XX, foi com força e grande presença.

“Hoje, todos nós que estudamos os artistas viajantes, temos de reavaliar, inclusive, o vocabulário, a forma de tratar negros e indígenas”, diz Diener

A contestação em torno de sua obra surge por volta dos anos 1960, quando passa a ser problematizada a representação do colonialismo pelos artistas viajantes. Um marco nessa revisão da história da arte no Brasil foi a XXIV Bienal de São Paulo (1998), que, a partir do Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade, escancara a ideia de “centro e periferia” e o conceito de “contaminação”.

Antes da Bienal, Adriana Varejão, em Filho Bastardo (1992), utiliza fragmentos iconográficos de Debret para situá-los em cenas de violência. E, na última década, conforme negros e indígenas se “firmam mais e mais como produtores da própria imagem”, as obras do artista passam a ser não apenas criticadas, mas também parodiadas e ironizadas.

Jaider Esbell (1979-2021) é um dos que dizia ter compreendido que a arte europeia relegava os povos indígenas a uma “marginalidade opressiva” e que, portanto, o domínio da arte era fundamental para a libertação simbólica dos povos originários. Gê Viana, em Sentem Para Jantar (2021), da série Atualizações Traumáticas de Debret, coloca os negros sentados à mesa de jantar, refazendo a cena de O Jantar, na qual os brancos comem e os negros servem.

Outro nome-farol dentro do que o autor chama de “atualização” é Denilson Baniwa, que, em suas releituras, coloca elementos contemporâneos junto aos indígenas. Dalton Paula, Jaime Lauriano e Rosana Paulino são outros que adotam “estratégias de inversão e de ressimbolização” de imagens do passado para “redefinir as idades de corpos submetidos à violência”.

Para Leenhardt, Debret se inscreve na rara categoria dos artistas-antropólogos, enquanto Rugendas “era um autêntico pintor viajante”, “não muito meticuloso no que dizia respeito à exatidão de seus desenhos”. Já para Diener, Rugendas tem um caráter científico e naturalista muito forte, que o torna mais objetivo.

“Ele buscou fazer um inventário visual do País, que conversa de forma direta com o inventário científico, oferecendo um sistema classificatório que contribui para a transformação do olhar europeu em um olhar menos preconceituoso”, defende Diener, mostrando que a disputa se dá não apenas entre o passado colonial e a luta identitária, mas também entre os próprios estudiosos dos artistas viajantes. •


O que é a história da arte?

Dois livros procuram mostrar como têm sido construídas as narrativas, muitas vezes racistas, a respeito de obras, movimentos e artistas

por Kelvin Falcão Klein

Arte: Olhar e Pensar. David Salle. Tradução: João Ricardo Milliet. WMF Martins Fontes (300 págs., 79,90 reais) – Compre na Amazon

As Invasões Bárbaras: Uma Genealogia da História da Arte. Éric Michaud. Tradução: Flavio Magalhães Taam. WMF Martins Fontes (300 págs. 69,90 reais) – Compre na AmazonO que é a História da Arte? Entre outras coisas, é um discurso que tenta organizar as obras de arte no tempo e no espaço, apresentando semelhanças

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Última Atualização: 25/07/2024