Acionistas querem raspar o cofre da Eletrobras
EDITORIAL
Operação proposta em AGE prioriza ganhos de curto prazo e reduz espaço para investimentos estratégicos
Em Assembleia de acionistas marcada para 19/12/2025, os acionistas da Axia (ex-Eletrobras) avaliarão a proposta apresentada pela atual gestão para acessar até R$ 39,9 bilhões em reservas de lucros de acumulados. Essa medida expõe de forma cristalina uma orientação de curtíssimo prazo do novo comando da companhia. Trata-se de uma operação que, do ponto de vista econômico, direciona o patrimônio acumulado da empresa para ganhos imediatos, em detrimento do investimento e do planejamento.
Reservas acumuladas ao longo de décadas — em grande parte ainda sob controle estatal e durante o período em que a empresa era pública — estão prestes a ser mobilizadas para gerar benefício financeiro imediato a acionistas privados, especialmente grandes acionistas preferencialistas. Foram mais de R$ 31 bilhões em lucros acumulados na forma de reserva de lucros durante o período em que a companhia ainda era pública (até 2022) — resultado direto do esforço, competência e dedicação de seus empregados.
A estratégia revela uma visão típica de processos de financeirização: em vez de fortalecer a empresa, ampliar sua capacidade de investimento ou garantir a sustentabilidade do sistema elétrico brasileiro, a gestão opta por transformar patrimônio acumulado em potencial de ganho financeiro de curto prazo. O objetivo parece ser simplesmente “raspar o cofre”, mesmo que isso deixe a companhia enfraquecida, com menor capacidade de cumprir seu papel estratégico de sustentar o crescimento da oferta de energia elétrica.
O núcleo da operação consiste na capitalização de reservas de lucro por meio da bonificação em ações preferenciais conversíveis (PNCs). Sob a alcunha de “aumento de capital”, recursos que deveriam servir para financiar investimentos futuros e sustentar a expansão do setor elétrico são convertidos em ações negociáveis em bolsa. Na prática, há um desvio de recursos da esfera produtiva para a lógica financeira, característica de modelos em que retornos rápidos aos acionistas se sobrepõem ao planejamento de longo prazo.
Do ponto de vista contábil, a capitalização das reservas não reduz imediatamente o patrimônio líquido total da empresa: o dinheiro sai da conta de “reservas de lucros” e entra na de “capital social”. Mas, do ponto de vista econômico, o efeito é outro. As reservas funcionam como uma poupança da empresa, que pode ser usada para investir, enfrentar crises ou sustentar o planejamento de longo prazo. Ao transformá-las em capital social, a companhia perde flexibilidade financeira: esse patrimônio fica “amarrado”, mais difícil de usar, reduzindo a capacidade real de investimento e de resposta a imprevistos. Na prática, transforma-se patrimônio acumulado ao longo de décadas em ativos financeiros líquidos nas mãos dos acionistas, enquanto a empresa fica com menos margem para investir e cumprir seu papel estratégico. É esse deslocamento — do cofre da empresa para o mercado financeiro — que está no centro da controvérsia.
Como agravante, em um contexto marcado pela crescente influência de investidores institucionais sobre a gestão da companhia — como é o caso de grandes fundos atuantes no capital da Axia — a proposta cria um arranjo societário específico para retirar dinheiro do caixa da companhia: a emissão transitória de ações preferenciais resgatáveis (PNRs), destinadas exclusivamente aos atuais detentores de ações preferenciais classes A e B. Essas ações existem apenas para viabilizar o pagamento, em dinheiro, do adicional econômico de 10% que as preferenciais teriam direito em caso de distribuição de dividendos. Ocorre que não haverá distribuição de dividendos. A empresa está capitalizando reservas, não distribuindo lucros, e mesmo assim decide entregar centenas de milhões do caixa exclusivamente aos acionistas preferencialistas, utilizando reservas acumuladas que, em tese, pertencem a todos os acionistas.
O prejuízo desta ação, do ponto de vista societário, recai, sobretudo, sobre os acionistas ordinários, incluindo a União. Trata-se de uma transferência assimétrica de valor, travestida de engenharia societária, que enfraquece a posição dos acionistas ordinários. Essa transferência assimétrica representa o desprezo reiterado pelo valor econômico do direito de voto das ações ordinárias, não considerado na modelagem. O voto não é mero instrumento formal: ele protege o investimento, orienta decisões estratégicas e condiciona escolhas fundamentais, como endividamento, alienação de ativos, política de investimentos e emissão de ações. Na proposta, o poder do voto é desconsiderado, assim como ocorreu na modelagem da privatização da Eletrobras.
Convém lembrar que mesmo com a transição para o novo mercado, os acionistas ordinaristas continuarão submetidos ao teto estatutário de 10% do poder de voto — inclusive a União — além de enfrentar uma diluição adicional do poder de voto com a conversão das novas ações PNC. Em contrapartida, os acionistas preferencialistas, além de receberem dinheiro das reservas imediatamente, passam a acessar diretamente o direito de voto por meio das PNCs. O resultado é uma transferência explícita de valor econômico e político das ações ordinárias para as preferenciais, sem compensação equivalente e sem debate público sobre seus efeitos institucionais.
Longe de representar qualquer “modernização”, a proposta explicita os limites do modelo adotado após a privatização: uma empresa estratégica passa a ser tratada como veículo de extração financeira. O resultado é uma Eletrobras/Axia com menos reservas, menos capacidade de investimento e menor autonomia para planejar o futuro do setor elétrico. A União, maior acionista ordinária, vem sendo diretamente prejudicada com as medidas e, com ela, o interesse público. Ainda assim, de forma contraditória, as medidas contam com a anuência da representação do governo junto à empresa. A promessa de que a privatização traria mais investimentos e eficiência revela-se, mais uma vez, ilusória. O que se consolida é um padrão conhecido: um patrimônio construído ao longo de décadas está sendo consumido em nome de ganhos imediatos, enquanto os riscos e os custos ficam para a sociedade.
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