O jornalista Renan Sukevicius publicou um artigo no jornal golpista Folha de S. Paulo intitulado Identitário, eu?, retomando a questão tipicamente identitária do “lugar de fala” para declarar que “quem faz seu uso [a palavra identitário] se presume acima de toda e qualquer identidade, confirmando a necessidade das iniciativas diversidade”, o que invalidaria críticas à política do identitarismo, na argumentação do autor. Diz Sukevicius:
“Pessoas brancas também são racializadas. Homens também se enquadram num gênero. Heterossexuais fazem parte de uma variação das noções de sexualidade e afetividade. E esses marcadores formam identidades.”
Tudo o que Sukevicius diz é muito óbvio, o problema é qual a relevância das tais “identidades” para a vida social normal? Elas se tornam relevantes a partir do momento em que se tornam requisitos para a concessão de privilégios. Quando um presidente da República como Lula é chantageado por interesses econômicos poderosos para indicar a um cargo vago no Supremo Tribunal Federal (STF), necessariamente, uma mulher negra, independente de qualquer outra consideração, isso se torna relevante e não sem motivo.
Privilégios, em geral, são mal vistos pela sociedade, especialmente a camada mais oprimida. O autor, um pequeno-burguês típico, pode não se dar conta, mas isso é tão verdadeiro que, desde a década passada e até hoje, é um dos principais temas tratados pela extrema direita em sua campanha de agitação política, tanto nos EUA quanto no Brasil. Sukevicius, porém, continua:
“Políticas de equidade e inclusão vêm justamente para reparar estragos que atravessam a história, e muitas destas ações estão centradas na iniciativa privada. Só que agora se pretende dar uma virada numa volta ao velho normal.”
Primeiro que se a “identidade”, isto é, raça, sexo ou a sexualidade de uma pessoa se tornam pré-requisito para um emprego ou um cargo público, não se trata de “equidade e inclusão para reparar estragos”, mas a criação de novos. Isso porque no meio social, são as relações econômicas as mais importantes a definir quem vai oprimir e quem será oprimido.
É um tanto óbvio para quem vive no mundo real, mas não é impossível encontrar negros, mulheres ou LGBTs na classe dominante, no Brasil e no mundo. O que ninguém jamais encontrará nesse círculo, porém, são os trabalhadores e, aqui, a política identitária mostra toda sua limitação.
Anos de toda a demagogia identitária em favor do povo negro não foram capazes de aliviar em nada o assassinato em escala industrial de negros pela polícia brasileira. Da mesma forma, toda a campanha demagógica direcionada às mulheres não apenas foi inócua com relação à violência doméstica que as aflige, como tampouco promoveu qualquer melhoria em relação a interesses reais dessa parcela que compõe metade da classe trabalhadora, em especial o direito fundamental ao aborto, que, hoje, está mais distante do que antes da ascensão do identitarismo.
Por fim, Sukevicius declara que “nem todo recorte identitário se enquadra como minoria” para defender que a política identitária não prejudica ninguém, o que é uma bobagem. Diz o jornalista:
“É como se o movimento ‘woke’ (outra palavra usada de maneira esquisita) tivesse tirado o emprego de todos os homens héteros do mundo, substituindo-os por mulheres trans e homens gays. É um coitadismo dos mais impressionantes.”
Além do aspecto cômico de um identitário falando em “coitadismo”, o fato é que não precisa haver uma relação direta entre um trabalhador perder o emprego para que sua vaga seja ocupada por um grupo protegido pelo identitarismo. Basta que as condições de pressão econômica insuportáveis que a esmagadora maioria das pessoas sofrem ocorra em paralelo a uma campanha dedicada a criar privilégios entre determinados setores da sociedade. Se tal campanha vier acompanhada do que Sukevicius chama de “coitadismo”, ou mais concretamente, de premissas como “reparar estragos que atravessam a história”, temos uma conjuntura perfeita para que ressentimentos aflorem.
Se ao invés de defender privilégios para este ou aquele grupo, a esquerda se mobiliza por salários condizentes com os custos de vida, jornadas de trabalho adequadas à capacidade da economia de absorver mão-de-obra e interesses reais da população, o único ressentimento gerado será contra os verdadeiros opressores, que compõem a classe dominante e que convenientemente são esquecidos pelos identitários em suas campanhas.
Por fim, Sukevicius trata o presidente norte-americano Donald Trump como “o principal líder do identitarismo branco, hétero e rico”, repetindo a clássica fórmula da direita de acusar os oponentes do que o acusador é, uma tática usada à exaustão pelo Estado de “Israel” contra o Hamas. Ocorre que os maiores acusadores de Trump e principais impulsionadores da ideologia defendida pelo autor são os imperialistas, que tinham no ex-presidente Joe Biden seu legítimo representante.
Biden, inclusive, chegou a decorar a sede do governo norte-americano com a bandeira LGBT em comemoração ao orgulho gay, como que para deixar claro que o identitarismo não é uma oposição real a nada, mas uma defesa sobretudo de uma classe social muito mais rica do que Trump, Musk e outros trumpistas combinados, que embora riquíssimos, são pobres quando comparados com os monopólios apoiadores dos democratas.