do Observatório Internacional do Século XXI
Identidade e heterogeneidade latina
por Wagner Sousa
A ideia de integração latino-americana e mais recentemente, sul-americana, têm, evidentemente, uma dimensão cultural e mais especificamente identitária. Identidade costuma ser um fatores apontados que dificultam, para exemplificarmos com outro processo de integração regional, o paradigmático caso europeu, o avanço no processo de integração e o estabelecimento de maiores graus de solidariedade (o implica nas nações mais ricas assumirem custos econômicos). A dificuldade está no supranacional superar o nacional no imaginário coletivo. Alemães, em princípio, não querem subsidiar gregos, portugueses ou espanhóis, como se viu nas difíceis negociações para os pacotes de resgate da “crise da dívida” europeia em 2011, dívida essa essencialmente contraída por déficits comerciais destas nações…com a Alemanha. Em um grau de integração e institucionalização bem menor a mesma dificuldade se coloca na nossa região do globo.
Na América Latina, os Estados surgiram a partir da emancipação de sua condição de colônias das metrópoles europeias, com suas economias extrativistas e exportadoras e sociedades escravistas e desiguais, com grande opressão aos indígenas e, em muitas partes, aos negros. O caráter escravocrata e racista das sociedades latino-americanas constituiu, desde o início, formações sociais assentadas na extrema desigualdade econômica e também política. Nos Estados Unidos, em sua parte sul especialmente, a escravidão também conformou um sistema político e econômico muito desigual. Têm-se aqui, no entanto, a importante diferença de se tratar da identidade nacional estadunidense, uma construção ideológica muito mais forte do que a ideia de uma identidade de um conjunto de países. O que se quer destacar neste parágrafo é a formação identitária na América Latina, constituída a partir de um espaço de exploração econômica dos europeus, multifacetada em vários “Estados Nacionais”, estes formados por várias etnias e culturas.
A formação dos Estados Nacionais, no seu núcleo original na Europa, deu-se como produto de um processo secular de muitas guerras, graduais centralizações de poder e estabelecimento, a partir da “Paz de Westphalia”, em 1648, da ideia de “soberania”. A noção de homogeneidade étnica, linguística e cultural, de um “passado comum”, construído em grande medida a partir de mitos fundadores, lastreou a construção dos “Estados Nacionais” europeus. Portanto, diferentes processos históricos marcaram a formação da “nacionalidade” na América Latina e na Europa e mesmo também quando se considera a formação dos Estados Unidos em relação aos Estados europeus.
As pesquisadoras Marine Bolfarine Caixeta e Simone Rodrigues Pinto, especialistas em estudos latino-americanos pela Universidade de Brasília, no texto para o Le Monde Diplomatique “A difícil problemática da identidade para a integração” destacam a questão da identidade regional latino-americana, a relação e as diferenças com a potência que se afirmou no hemisfério: “No século XIX, os Estados Unidos despontavam como uma potência regional. Em 1823, a criação da Doutrina Monroe, com o lema ‘América para os americanos’, evidenciou suas ambições imperialistas em relação ao continente. Inicialmente apenas uma advertência às potências europeias no sentido de que não tentassem reativar o domínio colonial sobre o continente, ainda no século XIX a doutrina passou a ser utilizada como justificativa intervencionista em todo o continente. Seu lema poderia ser lido, portanto, como a América para os norte-americanos. Nesse contexto, temendo o crescimento imperial dos Estados Unidos e da Rússia e a consequente superação dos franceses ocorrida, Michel Chevalier defende o papel de liderança da França no que ficou conhecido como ‘pan-latinismo’, uma vez que seu país seria o guardião de uma cultura latina. Assim, duas origens da civilização europeia estariam reproduzidas no “Novo Mundo”: a romana e a germânica. Isso justificaria essa divisão entre a América do Sul, católica e latina, e a América do Norte, protestante e anglófona. A partir daqui nasce não o nome “América Latina”, mas sim a ideia de uma América Latina, intensificada após a Segunda Guerra Mundial, principalmente por meio da ação dos organismos políticos multilaterais e o conceito de ajuda externa, muito presente na política externa dos Estados Unidos.” A uma diferença na origem de suas partes, de caráter étnico e religioso, no continente americano, se soma, como descrito, a questão geopolítica e a subordinação da região ao EUA. A identidade regional, além das identidades nacionais, busca em muitos momentos se firmar como contraponto a uma grande potência que tem interferido sistematicamente nos destinos dos países da região.
Mas assim como não há propriamente uma “identidade europeia” que faça as diferentes nações rumarem a uma efetiva federação política, um poder comum acima de seus entes nacionais, “identidade latino-americana” é algo bastante fluido. Os europeus, de toda forma, lograram constituir a União Europeia, que a despeito de seus problemas, foi o passo mais ousado em um processo de integração regional. Não se está falando de algo parecido na América Latina, e sim de arranjos político-institucionais bem menos complexos, ainda que importantes. A Europa, todavia, serve, em grande medida, como modelo. Instituições como Mercosul, Unasul, Alba, Celac, Caricom são tratativas entre países vizinhos de uma mesma região do “Sul Global” para cooperação e intercâmbio, especialmente econômico, com vistas à superação do subdesenvolvimento. A região, contudo, tem vivido nos anos recentes um processo político de divisão e radicalização no interior dos seus países, à semelhança com o que ocorre em muitas nações do mundo, destaque para o chamado “mundo desenvolvido”. Também na América Latina vivenciamos a ascensão da extrema direita e do nacionalismo em detrimento de acordos e instituições internacionais.
A conjuntura, portanto, é desfavorável. Entretanto permanece a ideia de uma “identidade latino-americana”, que, mesmo estando mais presente nos desejos de dirigentes políticos, ativistas e intelectuais progressistas que se dedicam a pensar os problemas da região do que na realidade é, de qualquer forma, a percepção de uma história comum e de um destino comum, que pode, ainda que em momento futuro, possibilitar a confluência da ação política e a afirmação perante os poderes dominantes do mundo.
Wagner Sousa – com formação na área de Economia Política Internacional, pelo Instituto de Economia da UFRJ. Sua tese de doutorado versou sobre as relações franco-germânicas e o surgimento da moeda comum europeia
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