Ou doido sou eu que escuto vozes. Não há gente tão insana, nem caravana, nem caravana, nem caravana do Arará. Não há!”
Chico Buarque
O Brasil é um país de eternas contradições socioeconômicas, sendo o contexto trabalhista atual um bom exemplo. Se, por um lado, o debate público se aquece em torno de pautas sociais — como a proposta de redução da jornada de trabalho sem corte de salário e o eventual abandono do regime 6×1 —, o Poder Executivo divulga recordes de desemprego e geração de postos formais, além da expansão da massa salarial e, simultaneamente, lança um robusto programa de crédito consignado destinado aos empregados regidos pela CLT. Por outro lado, na contracorrente, o Supremo Tribunal Federal se prepara para julgar o Tema 1.389, cujo desfecho pode consolidar a “pejotização” (neologismo criado para designar uma espécie de simulação contratual fraudulenta de natureza trabalhista, tributária e previdenciária) como modalidade contratual ordinária, facultando ao empregador o uso de modalidades contratuais que escapam do arcabouço protetivo constitucionalmente assegurado ao trabalho humano subordinado.
Assim, o país celebra avanços na formalização e na renda, mas, contraditoriamente, ensaia permitir que a própria formalidade se torne opcional — quadro que revela a complexa tensão entre políticas públicas e programas de inclusão socioeconômica de quem vive da oferta de sua mão de obra no mercado econômico (o que é o caso da esmagadora maioria da população) e tendências de desregulação do mercado de trabalho.
Ao admitir que o labor pessoal — ainda que caracterizado por inequívoca subordinação — seja juridicamente enquadrado como prestação de serviços entre pessoas jurídicas, de natureza civil ou comercial, bastando a existência de um simples contrato formal escrito ou até mesmo verbal nesse sentido, o Estado transfere a definição do regime jurídico nas relações de trabalho às forças do mercado e pavimenta o caminho para a consolidação da “pejotização” como padrão hegemônico de contratação e gestão de mão de obra.
Não há dúvidas de que a lógica da competição por custos fará da “pejotização” o caminho dominante, seja pelos benefícios tributários e previdenciários da pessoa jurídica, seja pela supressão de encargos trabalhistas, a exemplo da desconsideração do salário-mínimo e da jornada máxima legal, bem como da possibilidade de ruptura contratual sem ônus, o que reduz o preço do serviço e pressiona empresas concorrentes a adotar o mesmo modelo para preservar margens de ganhos.
O fenômeno tende, portanto, a generalizar-se não porque seja mais eficiente em termos de produtividade — como alegam alguns analistas, ao defenderem o argumento exclusivo da livre iniciativa —, mas sim porque explora distorções fiscais, como a exoneração do FGTS e da cota patronal ao INSS, e transfere riscos econômicos ao trabalhador — inclusive aqueles relacionados à saúde, higiene e segurança no trabalho, que são questões de ordem pública, com forte impacto na saúde da população e no sistema de saúde pública financiado por toda a coletividade.
Os efeitos e as contradições, portanto, transcendem o domínio juslaboral e invadem as esferas tributária, previdenciária, de saúde pública etc.
Um importante ponto a se destacar é que, enquanto o debate fiscal vem dominando a pauta da política econômica do Estado brasileiro nos últimos anos, com a implementação de sucessivas medidas voltadas à busca do equilíbrio fiscal, se prevalecer, no âmbito do STF, o entendimento que torna a contratação empregatícia algo opcional para o empregador — a despeito da presença concreta da subordinação jurídica na relação de trabalho subjacente —, haverá um significativo impacto sobre a arrecadação tributária [1].
Sem liberdade de escolha
Imperioso registrar que não se trata de negar legitimidade ao trabalho autônomo genuíno, historicamente reconhecido pelo ordenamento (artigo 593 do CC e seguintes, entre outros), nem mesmo deixar de se valorizar e fomentar a livre iniciativa e o empreendedorismo criativo, inovador e gerador de riquezas, vantajoso para o contexto socioeconômico como um todo e alçado à condição de fundamento da República, ao lado dos valores sociais do trabalho (artigo 1º, IV, da CF/88).
Formas autônomas de contratação são e sempre foram — legítimas, por meio de pessoa física ou jurídica (a exemplo do MEI, da sociedade unipessoal, da participação societária e das cooperativas). O que não se admite é a fraude, a simulação, pois não é dado às partes escolher, de forma fictícia, a modalidade contratual quando esta não corresponde à realidade dos fatos. Ou seja, as coisas são o que são. Um contrato — sobretudo de adesão —, ainda que pretenda, não tem força para se sobrepor à realidade e transmutar a natureza da relação fático-jurídica pela simples vontade das partes, sobretudo em contextos de assimetria. Por exemplo, se a relação é consumerista no plano fático, não se transmuta em relação civil comum apenas pela nomenclatura formal atribuída no contrato de adesão. É o óbvio ululante, diria Nelson Rodrigues!
O alvo da crítica, portanto, é a simulação de autonomia quando estão presentes os elementos típicos do emprego — pessoalidade, habitualidade, onerosidade e, sobretudo, subordinação jurídica (artigos 2º e 3º da CLT). Tal disfarce infringe toda lógica jurídica construída no Ocidente desde a eclosão da revolução industrial e das revoluções liberais, voltada à proteção e promoção dos valores sociais do trabalho e à garantia de condições dignas de labor. Ainda, contraria os comandos da Resolução n. 198 da OIT, de 2006, que preceitua que os países-membros devem formular políticas públicas nacionais para combater fraudes contratuais nas relações de trabalho, capazes de ocultar o verdadeiro status legal do empregado e privá-lo de devida proteção (item 4, alínea ‘b’).
No curso dos dois últimos séculos, as razões filosófica, política e jurídica do Ocidente, pressionadas por conflitos sociais e reivindicações populares, tiveram como um de seus principais desafios a pauta relativa à construção e ao aprimoramento de instituições políticas e de arranjos jurídico-normativos capazes de proteger a pessoa humana e sua dignidade, sobretudo no mundo do trabalho, por meio da garantia de condições de trabalho dignas, justas e humanas. Isso porque, para a grande maioria das pessoas, a inserção socioeconômica e o acesso aos recursos materiais que possibilitam sua subsistência, capacitação para o exercício das liberdades fundamentais, desenvolvimento de suas potencialidades e realização de seus projetos de vida somente são viabilizados por meio da oferta de sua mão de obra no mercado econômico para o exercício de um trabalho juridicamente subordinado/economicamente dependente (artigos 2º e 3º da CLT).
Assim, a dignidade da pessoa humana impõe, como consequência lógica, a tutela jurídica do trabalhado, voltada à preservação da higidez física e psíquica do trabalhador e à harmonização de suas esferas de vida pessoal e profissional.
Nada obstante, como demonstram os marcos históricos, essa arquitetura protetiva não se ergueu exclusivamente para melhorar as condições de vida e de trabalho dos assalariados. O complexo normativo laboral também foi concebido como instrumento de contenção de greves, de neutralização de radicalismos políticos e de prevenção de perdas produtivas – objetivos voltados à pacificação social e à criação de um ambiente econômico favorável à livre-iniciativa, à segurança jurídica e aos investimentos de longo prazo.
As normas trabalhistas, portanto, geram externalidades positivas para o desenvolvimento sustentável da economia. Regras de saúde, higiene e segurança, por exemplo, internalizam riscos que, se lançados sobre a coletividade, resultariam em custos elevados de absenteísmo, rotatividade e pressão sobre o sistema de saúde. De igual modo, a remuneração mínima e o tempo livre assegurados por limites de jornada, intervalos, férias e licenças alimentam a demanda agregada e fortalecem o mercado interno – situação atualmente vivenciada no país, a propósito.
Paradoxo
Nesse contexto, é valioso destacar que o entendimento adotado pelo STF no julgamento de determinadas reclamações constitucionais, ao buscar legitimar práticas fraudulentas e promover a generalização da “pejotização” no mercado de trabalho, caso venha a ser efetivamente consolidado com força vinculante, teria o condão de reavivar, no Brasil do século 21, a teoria contratual vigente nos países centrais do capitalismo nos primórdios da Revolução Industrial — séculos 18 e 19. Nessa lógica, não há dúvidas de que o maior prejudicado seria o trabalhador mais vulnerável, pois, quanto maior a vulnerabilidade de uma pessoa humana, menores são seu poder de barganha e suas condições de pactuação no mercado de trabalho.
Ao adotar a ficção de que trabalhador e empregador se encontram em igualdade de condições para pactuar o regime jurídico aplicável, o STF corre o risco de instituir a figura paradoxal do trabalhador “subordinado, porém autônomo” — um oxímoro que ignora as desigualdades materiais inerentes ao mercado de trabalho brasileiro. Sob essa premissa formalista, bastaria um “contrato de adesão” para conferir ao empregado suposta liberdade de optar, junto com o tomador de serviços, entre o estatuto protetivo do emprego (artigos 2º e 3º da CLT) e o direito civil‑comercial.
Na prática, porém, a subordinação continuaria presente e, com ela, a assimetria de poder de barganha, de modo que a escolha declarada seria apenas retórica. Tal construção esvazia o princípio da primazia da realidade (artigo 9º da CLT), viola a indisponibilidade de direitos trabalhistas (artigo 7º, caput, CF/88) e subverte a lógica do valor social do trabalho (artigo 1º, IV), pois transfere ao indivíduo o ônus de renunciar — sob pressão econômica — às garantias mínimas que a própria Constituição consagra como fundamentais e de ordem pública.
Cabe, aqui, um parêntese para registrar que, no Direito do Trabalho, a premissa jurídica de igualdade de condições entre as partes para negociação contratual manifesta-se no âmbito do direito coletivo, no qual se presume a existência de equilíbrio de poder de barganha entre empresas e sindicatos. Nem mesmo nesse contexto o STF admitiu liberdade contratual irrestrita, tendo resguardado os direitos absolutamente indisponíveis do trabalhador das negociações, conforme tese firmada no Tema 1.046. E mais, a supressão da premissa da hipossuficiência nas relações desiguais abriria, também, as portas para a subversão do Direito do Consumidor, em nome da modernização – ou tal flexibilização ficaria restrita apenas ao ramo juslaboral?
Proteção x informalidade
Retomando o raciocínio, cumpre esclarecer que, nas principais democracias capitalistas, a regra hegemônica de organização do mercado de trabalho continua sendo a proteção jurídica do emprego subordinado — seja por meio de legislação estatal, seja por convenções coletivas negociadas com sindicatos robustos. As economias avançadas demonstram que é possível conciliar, com eficiência, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa. Alemanha, França, países nórdicos e mesmo os Estados Unidos, por exemplo, sustentam alta competitividade em meio à revolução digital, sem abrir mão de pisos salariais, limites de jornada, normas de proteção à saúde e direitos coletivos.
Nesses países, o emprego protegido constitui a principal política pública de inclusão socioeconômica, funcionando como eixo de distribuição de renda, financiamento da seguridade social e ancoragem democrática das relações produtivas. Assim, longe de ser obstáculo à modernidade, o estatuto protetivo do trabalho revela‑se a forma mais abrangente de valorização do trabalho humano e mitigação das desigualdades que fragilizam tanto a dinâmica do mercado quanto a estabilidade das instituições [2].
Dados da OCDE confirmam que, quanto maior o grau de desenvolvimento econômico, social e institucional, menor tende a ser a parcela de trabalhadores que atuam por conta própria, sem cobertura trabalhista ou previdenciária. Nos países‑membro mais avançados, o emprego subordinado — regulado por lei ou por convenções coletivas — predomina amplamente: a participação de autônomos na força de trabalho gira em torno de 6 % a 9 % em economias como Estados Unidos ( 6,1 %), Canadá ( 6,8 %), Dinamarca ( 8,4 %), Alemanha ( 8,6 %) e Austrália ( 8,7 %). Na outra ponta do espectro, países com menor renda per capita e alta informalidade apresentam taxas substancialmente mais elevadas: Colômbia ( 46,6 %), México ( 31,4 %), Grécia ( 31 %) e Turquia ( 28,6 %).[3]
O Brasil situa‑se mais próximo desse segundo grupo. Estimativas recentes indicam que cerca de 33 % da população economicamente ativa trabalha na condição de autônomo, com limitada – ou nenhuma – proteção social.
Esse contraste sugere que economias modernas, democráticas e competitivas não se sustentam sobre trabalho desprotegido. Ao contrário, elas combinam alta produtividade com redes sólidas de seguridade, favorecendo a estabilidade macroeconômica, uma arrecadação tributária robusta e a redução das desigualdades. Onde a autogestão da própria força de trabalho se torna a regra — seja por necessidade, seja por incentivos fiscais distorcivos —, ampliam‑se a volatilidade de renda, o subfinanciamento previdenciário e as barreiras à inclusão social. No Brasil, por exemplo, é nítida a diferença remuneratória e de acesso a benefícios entre o emprego formal e o informal.
Não se trata, aqui, de esmiuçar as múltiplas causas desses indicadores, mas de realçar um ponto: a simples expansão do trabalho autônomo não se traduz, por si só, em ganhos de produtividade, tampouco em melhores indicadores socioeconômicos. Modernizar as relações laborais — se o propósito for genuinamente promover progresso econômico e inclusão social — não equivale a desmontar o arcabouço protetivo forjado, ao longo de séculos, em favor do trabalho subordinado.
Ao contrário, as nações mais desenvolvidas demonstram que competitividade e inovação convivem com redes robustas de proteção ao emprego. Nesses países, a busca do pleno emprego permanece a pedra angular das políticas públicas de trabalho, exatamente como preconiza o artigo 170 da Constituição. Desproteger o vínculo de emprego, portanto, não é sinônimo de modernidade, mas um atalho perigoso que pode aprofundar desigualdades e discriminações, fragilizar a própria base econômica e radicalizar a política, com viés antidemocrático.
Assim, ao flertar com esse caminho, o Brasil se desgarra de toda lógica jurídico-normativa que rege as democracias constitucionais ao redor do mundo — sobretudo nos principais centros capitalistas do Ocidente. Não bastasse o fato de o Brasil ter sido recordista no tráfico de escravizados africanos e o último país das Américas a abolir a escravidão, além de figurar entre os mais desiguais do planeta, agora estamos prestes a ser também os primeiros a inaugurar uma nova ordem trabalhista que, a despeito do discurso da modernização, irá tão somente reavivar a lógica jurídica de séculos passados.
Sob o rótulo de modernização, o Brasil insiste em perpetuar — para lembrar Roberto Schwarz — ideias fora do lugar. O resultado é um futuro que ostenta verniz emancipador, mas repete velhos padrões. Nesse universo invertido, reformas de dantesco impacto social deixam de ser papel do Legislativo e passam a ser ditadas pelo Judiciário; teses de repercussão geral afastam‑se dos fatos e da “ratio” do precedente; reclamações constitucionais, antes circunscritas à defesa da autoridade da corte, tornam‑se atalhos para reexaminar provas, em afronta ao princípio da aderência estrita; e a simulação contratual e a fraude passam a ser fontes de um “realismo mágico”, em que as coisas já não são o que elas são, o fantasioso se naturaliza no ordinário.
Entre o forte e o fraco, a lei converte‑se em instrumento de opressão do fraco, enquanto a suposta liberdade contratual se apresenta como redentora; “pejotização” confunde-se com terceirização lícita; e, após 80 anos, à Justiça do Trabalho já não cabe sequer averiguar a presença dos elementos fáticos‑jurídicos da relação de emprego, pois a sua competência se esvai. Assim, o passado ressurge travestido de vanguarda.
Nessa toada, se a prerrogativa constitucional de proteger e valorizar o trabalho — sobretudo o trabalho subordinado – ceder diante da “pejotização” legitimada, operar-se-á uma inversão digna da crítica de Ferdinand Lassalle. Em sua lição, a Constituição só possui eficácia e força normativa quando exprime os “fatores reais de poder”. Aqui, porém, esses fatores deslocam o centro normativo das relações de trabalho para o mercado, reduzindo a Carta de 1988 a mera “folha de papel”. Simultaneamente, aquilo que antes era justamente “papel” — o contrato individual, submisso à primazia da realidade — ganha estatura quase soberana: a letra contratual passa a definir, por si, o estatuto jurídico do trabalhador, tornando a própria realidade fática “inócua” ou, pior, juridicamente irrelevante. Assim, o Direito do Trabalho deixa de ser contrapeso para se conformar aos novos poderes econômicos, enquanto a Constituição social, através de uma decisão de seu órgão guardião, perde a função de limitar o poder e garantir igualdade material.
[1] Para se ter uma ideia, em nota técnica, pesquisadores da FGV apresentaram dados para concluir que “se supusermos que, dado o avanço da pejotização e com o passar dos anos, 50% da força de trabalho com carteira assinada passe a atuar como conta própria formal, isso é, seja pejotizada, a perda arrecadatória seria da ordem de 384 bilhões de reais por ano. Esta redução corresponde a 16,6% da arrecadação federal de 2023, a valores do ano passado”. Estudo disponível no seguinte endereço eletrônico https://eaesp.fgv.br/sites/eaesp.fgv.br/files/impactos_da_pejotizacao_sobre_a_arrecadacao_de_tributos_-_final.pdf , acessado em 28 de abril de 2025, às 15hs. Nesse sentido, ver também o estudo do IPEA, disponível em https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8327/1/cc_38_nt_desequilibrio_financeiro_MEI.pdf , acessado em 14 de maio, às 16hs. [2] Para aprofundamento no tema, ver GODINHO DELGADO, M. .; GUSTAVO DE SOUZA ALVES, L. .; PINHEIRO VILAR LIMA, M. . O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O OBJETIVO CONSTITUCIONAL DA BUSCA DO PLENO EMPREGO. Res Severa Verum Gaudium, Porto Alegre, v. 7, n. 1, 2022. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/resseveraverumgaudium/article/view/128972. Acesso em: 14 maio. 2025. [3] Dados disponíveis no seguinte endereço eletrônico https://www.oecd.org/en/data/indicators/self-employment-rate.html?oecdcontrol-d7f68dbeee-var3=2023 .*Luiz Gustavo de Souza Alves é mestre em Direito pelo UDF – Centro Universitário, juiz do Trabalho substituto do TRT-18 e autor do livro Estado Democrático de Direito e Ações Afirmativas Antirracistas no Âmbito das Instituições e Empresas (Editora Venturoli).
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