Morreu há poucos dias, no Rio de Janeiro, o embaixador Marcos Azambuja, aos 90 anos. A causa da morte, pelo que sei, foi um câncer contra o qual lutava havia anos. Foi um dos maiores diplomatas da sua geração e superior também à maioria dos pares das gerações mais novas – muitos desses últimos, aliás, deixam muito a desejar.
Azambuja ocupou cargos importantes. Foi embaixador em Buenos Aires, por exemplo, uma das embaixadas mais importante para nós. Também representou o País em Paris e foi secretário-geral do Itamaraty. Não chegou a ministro de Estado, mas isso não importa, nada disso importa. Afinal, o que é um ministro das Relações Exteriores ou um embaixador em qualquer lugar? Tudo isso passa e o que fica é a lembrança que deixamos, a descendência física e espiritual.
Meu pai, Paulo Nogueira Batista, assim como Samuel Pinheiro Guimarães, ambos brilhantes, também não chegaram a ser ministros de Estado, mas deixaram suas marcas no Itamaraty, no Brasil e também no exterior. Como dizia Nelson Rodrigues, a propósito de Roberto Campos, “um ministro de Estado é pouco mais do que um contínuo de luxo”. A marca que Campos deixava, dizia Nelson, era a sua personalidade, a sua inteligência, não as posições que ocupou.
Assim foi Marcos Azambuja. Tendo sido amigo do meu pai, diplomata da mesma geração, herdei a amizade. Ele era, entre outras coisas, um frasista inigualável – como, creio, nunca houve no Itamaraty e no País. Talvez só Otto Lara Resende, outra figura extraordinária, possa ser comparado a ele.
Depois da minha passagem pelas negociações da dívida externa e da moratória de 1987, que ajudei a construir, no tempo do ministro Dilson Funaro – injustamente esquecido, diga-se de passagem –, Azambuja me disse, carinhosamente: “Paulinho, o Dilson e você são excelentes, mas pensa bem: imagina que o Brasil é credor de Angola, que não paga. Você tem de cobrar a dívida e o ministro deles é dono de uma fábrica de brinquedos (Funaro era empresário desse ramo). Pergunto: você levaria a sério?”
Sem agredir ou elevar o tom, ele soltava as suas piadas e fazia críticas irônicas e severas
O que contava era sua maneira de dizer. Sem agredir ou elevar o tom, ele soltava as suas piadas e fazia críticas irônicas e severas. Por esse comentário nota-se que ele era politicamente conservador e inclinado a menosprezar os africanos e os economistas de esquerda que trabalhavam com Funaro. Mas e daí? Posição política ou preconceito definem as qualidades fundamentais de uma pessoa? Wagner, Nietzsche, Schopenhauer, Kafka e Thomas Mann, para citar alguns exemplos, eram de direita ou politicamente indiferentes. Wagner, um notório antissemita, começou como revolucionário em 1848 para terminar um arquiconservador. Há, por outro lado, um sem-número de progressistas que pouco ou nada valem. Não quero dar exemplos.
Azambuja não escrevia muito. Só artigos em jornais e revistas, que eu saiba. Parece que ele trabalhava em um livro nos anos recentes, que ficou inacabado. Espero que publiquem postumamente, ou pelo menos uma coletânea de seus artigos e discursos. De qualquer modo, ele era inigualável na conversa. Pode-se dizer dele o que Nelson Rodrigues disse sobre Otto Lara Resende, aquele outro frasista memorável: “O Estado brasileiro deveria pagar um taquígrafo para andar atrás do Otto, anotando tudo que ele diz, de forma lapidar, mas nunca coloca no papel!”
Em certa época, Azambuja chefiava a embaixada em Buenos Aires, e meu pai era o representante brasileiro junto à Associação Latino-Americana de Integração, em Montevidéu. Eis que ele telefona para meu pai, com quem rivalizava política e profissionalmente, e disse: “Paulo, o que você está fazendo aí em Niterói? Vem me visitar”. Uma piada cortante, pois meu pai estava num ponto baixo da sua excepcional carreira, servindo em um posto de menor importância. Mas, de novo, não havia acidez na fala de Azambuja e ele provocava mais risos do que ressentimentos – se bem que não tenho certeza se meu pai levou o telefonema na esportiva.
Em outra ocasião, caminhávamos pela Oscar Freire, em São Paulo, a rua em que – antigamente, pelo menos – as mulheres mais lindas circulavam o dia todo, e ele exclama: “Mas isso aqui é a National Geographic: lugares maravilhosos que nunca visitarei!”
Ficou na minha lembrança também um comentário, igualmente certeiro, que ele fez sobre a minha mãe, Elmira Pinheiro Nogueira Batista: “Paulo, se eu fosse casado com a Elmira, já seria presidente da República” – uma referência ao tino político dela, que era integrante da família Pinheiro de Minas Gerais e superior, nesse ponto, a todos da nossa família. Ao mesmo tempo, era mais uma cutucada no meu pai.
Na missa de sétimo dia da minha mãe, em setembro do ano passado, no Rio de Janeiro, fiz um pequeno discurso em que citava essa tirada dele. Todos riram. Ele, presente, veio me dar um abraço emocionado. Eu disse que faria uma visita a ele na minha próxima viagem ao Rio, mas não deu tempo. Foi a última vez que nos vimos.
É a eterna lição: nunca se deve adiar um abraço, uma visita aos amigos queridos. •
Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Humor inigualável’