A China possui um sistema de controle da população bem rigoroso: o hukou, que pode ser traduzido como “registro familiar”. Ele se tornou um dos grandes temas de debate no país asiático – e de insatisfação, em especial entre jovens de origem rural, que querem oportunidades iguais.
Criado em 1958, trata-se de um mecanismo para controlar a migração interna na China continental. De acordo com o governo da época, sob a liderança de Mao Tse-tung, o objetivo era limitar o êxodo rural e evitar a superpopulação nas cidades. De maneira mais ampla, mantinha o planejamento e o controle do Estado sobre os indivíduos e o desenvolvimento do país.
Não é por acaso que a instituição do hukou tenha coincidido com o Grande Salto Adiante, a campanha de industrialização e coletivização agrícola implementada pelo Partido Comunista Chinês (PCCh) entre 1958 e 1962, liderada por Mao, para fazer uma transição rápida de uma economia agrária para uma potência industrial.
No contexto da ditadura de partido único e do atual capitalismo imperialista chineses, o hukou controla muito mais que a densidade demográfica. E, apesar de vir sendo reformado, está longe de reparar a segregação social existente.

Vista noturna de Pequim, capital da China e terceira maior cidade do país. Foto: Foto: Zhuang Kaiyv
O que é e como funciona
O hukou é um registro de residência permanente que toda pessoa chinesa recebe quando nasce. Ele é definido de acordo com a família, de forma hereditária, como se fosse uma carteira de identidade familiar. Nele constam informações como local de residência, nomes dos pais e status. Duas categorias de hukou definem o status da pessoa: urbano e rural.
A China cobre uma área de 9,6 milhões de quilômetros quadrados, com boa parte de seu território classificado como rural. O hukou determina onde, dentro desse espaço, cada chinês pode viver de maneira legal.
A questão é que o hukou não serve apenas para determinar a origem de uma pessoa. Na prática, funciona como um passaporte interno da desigualdade. Ele vincula cada pessoa a uma cidade ou vila específica, afetando direitos sociais e de mobilidade física e social. Isso significa que o cidadão só pode ter residência permanente e usufruir de direitos sociais – como saúde, educação e previdência – nos limites determinados por seu hukou.

Operários chineses. Foto: Pixabay
Gera-se, assim, um apartheid que converte milhões de trabalhadores migrantes, os nongmin gong, em “cidadãos de segunda classe”, com uma identidade rural hereditária, discriminados inclusive por seus irmãos urbanos. Até os aplicativos de relacionamento distinguem as pessoas por tipo de hukou.
O hukou urbano garante acesso a saúde, educação, trabalho formal e previdência. Chineses com registro urbano têm mais oportunidades de trabalho, estudo e segurança social. Em contrapartida, quem tem hukou rural sofre com a escassez de serviços fora da vila e acaba sendo forçado a migrar e se tornar um trabalhador informal, sem direitos trabalhistas. Além disso, não há perspectiva de se estabelecerem na cidade, pois eles só têm permissão de residência temporária.
Quem nasce com hukou urbano sai na frente. Quem tem hukou rural continua marginalizado mesmo depois de viver anos numa cidade grande e contribuir para a geração de riqueza daquele local. Nas megacidades como Pequim, Xangai e Shenzhen, os nongmin gong chegam a viver décadas sem conseguir o hukou urbano. Quando morrem, seus restos são, com frequência, enviados à vila de origem.
Hukou na prática
Cerca de 200 milhões de trabalhadores migrantes – quase a população brasileira – vivem hoje nas cidades sem conseguir mudar o registro. Eles não têm acesso a serviços públicos, moram em condições muitas vezes desumanas, trabalham em condições precárias e sem direitos trabalhistas e 70% estão excluídos do sistema urbano de previdência social.
A partir da abertura econômica e das reformas de Deng Xiaoping, no final dos anos 1970, houve um crescimento vertiginoso das cidades. A restauração do capitalismo não foi acompanhada por uma abertura política que estabelecesse direitos democráticos básicos para a população.
O autor marxista e ativista chinês Au Loong-yu, em seu livro Hong Kong em revolta: a batalha das ruas e o futuro da China, publicado no Brasil pela Editora Sundermann, define de forma didática: “Não é por acaso que, embora o PC Chinês possa mudar suas políticas econômicas em um piscar de olhos (o que chamei de ‘variáveis da política’), sua ditadura de partido único nunca mudou (o que chamei de ‘a constante despótica’)”.
Nesse contexto, o hukou se mostrou uma ferramenta útil em muitos sentidos. Como segurar os custos de mão de obra e infraestrutura pública? O governo, então, começou a incentivar a migração rural temporária sem a troca do hukou rural pelo urbano, ou seja, sem conceder plenos direitos sociais aos migrantes temporários.
Isso permitiu um boom econômico com a mão de obra barata de milhões de trabalhadores. Também não houve sobrecarga nos serviços públicos, porque os migrantes não têm acesso a eles.
Resultado: a China virou uma potência industrial à custa da extração de mais-valia do trabalho semiescravo de milhões de trabalhadores invisíveis. A acumulação capitalista avançou, aproveitando a desigualdade entre campo e cidade para superexplorar os trabalhadores chineses, em particular da imensa massa de nongmin gong.
Nos últimos anos, o governo chinês vem ensaiando flexibilizar o hukou para impulsionar a economia. Ele permite que algumas cidades menores concedam hukou urbano a migrantes. Porém as megacidades, como Pequim, Xangai e Shenzhen, ainda mantêm regras rígidas.
Na verdade, existe uma necessidade premente para o capitalismo imperialista chinês. Então, o governo faz com que os camponeses se desloquem de suas terras para as cidades para vender sua mão de obra por migalhas. São semelhantes aos trabalhadores sem registro do Ocidente, só que lá isso é formalizado e apoiado pelo próprio governo.
Este trabalhador – que não têm direito a pensões, nem seguros de saúde, nem indenização por acidente de trabalho, tampouco à educação básica de seus filhos – produz a riqueza de capitalistas estatais e privados, sobretudo destes últimos, que respondem por mais de 60% do PIB do país e mais de 80% dos empregos urbanos.
Um aspecto importante é que o fato de terem permissão para residir apenas temporariamente nas cidades atrapalha muito a organização dos nongmin gong. Não obstante, constituem hoje o setor mais militante nas cidades.
Um conto chinês
Para ilustrar, vamos imaginar a seguinte história, com personagens fictícios, mas um enredo real.
Li Mei é uma mulher nascida numa vila rural da província de Yunnan. Ela foi registrada lá e possui o hukou rural igual a seus pais. Aos 18 anos, ela se mudou para trabalhar numa fábrica em Shenzhen, uma das maiores cidades da China e uma das zonas econômicas especiais (ZEE). Li Mei morava num alojamento precário em uma área industrial.
Li Mei se casou com Zhang Wei, também migrante, e teve um filho, Zhang Ming. A família foi morar num apartamento pequeno de um cômodo, num prédio velho, na parte antiga da cidade. Os anos se passaram com Li Mei e Zhang Wei trabalhando de sol a sol, em jornadas extenuantes, pagando aluguel e impostos… mas seu hukou continuava registrado na vila em Yunnan.
O apartamento era úmido, e Zhang Ming vivia doente. Ele não tinha direito a tratamento médico nas unidades urbanas, então seus pais gastavam muito dinheiro com médico e remédios – insuficientes para curar Zhang Ming. O casal tampouco podia comprar um imóvel, porque tecnicamente eles estavam de passagem na cidade onde viviam e trabalhavam há anos.
Zhang Ming também não tinha permissão para estudar nas escolas públicas locais, porque herdou o hukou rural de seus pais. Estudando em escola particular, tirou boas notas durante todo o seu percurso escolar, mesmo doente. No entanto, não pôde prestar vestibular.
Moral da história: os migrantes ajudam a construir a cidade, mas não são considerados “seus cidadãos”.
Consequências humanas e sociais
Na época de Mao, quando foi criado o hukou, se um camponês fosse para a cidade sem permissão, era chamado de “cego-vagabundo” (mangliu), maltratado e podia ser deportado à força. Hoje supomos que isso não aconteça, mas…
Atualmente cerca de 60 milhões de crianças e adolescentes vivem com avós porque os pais migraram para trabalhar. Criou-se uma geração de crianças deixadas para trás. O ciclo de pobreza se torna hereditário: se você tem hukou rural, seu filho também terá e herdará as mesmas restrições.
A desigualdade urbana foi mascarada. Mesmo com prédios novos e arranha-céus supermodernos e ultrafuncionais, há bairros e dormitórios precários para trabalhadores migrantes fora dos destinos turísticos. Os nongmin gong constroem os edifícios, mas nunca terão um apartamento neles.
Em determinadas circunstâncias, um jovem até consegue estudar em uma universidade de alto nível. Porém, depois de se formar, ele tem que voltar para sua província. De qualquer forma, muitos nem tentam por conta do alto custo de vida na cidade.
Outro exemplo terrível das consequências do hukou aconteceu durante a pandemia de covid-19. Milhares de trabalhadores migrantes não puderam ser atendidos e tratados, tampouco vacinados, perto de casa, porque o sistema de saúde está vinculado ao hukou. Mesmo em tempos de normalidade os hospitais das cidades se recusam a atender migrantes em emergências.
Indefensável
Por incrível que pareça, dentro do que se convencionou chamar de esquerda, há quem defenda o hukou ou passe um pano para ele. É o caso de neostalinistas e setores reformistas.
Argumentam que se trata de um sistema meramente administrativo, que nada tem a ver com opressão. Segundo eles, foi necessário para evitar o caos nas cidades e garantir estabilidade social. Só que chamar de sistema administrativo não muda o fato de que ele cria milhões de pessoas consideradas de segunda classe. Administração (no caso o Estado) que nega saúde, escola e moradia não é neutra, é instrumento de segregação.
Quanto à estabilidade, que podemos chamar de controle autoritário, ela se dá à custa de condenar gerações de trabalhadores a viver sem direitos nas cidades que eles mesmos ajudaram a construir. Estabilidade baseada na exclusão é ditadura e apartheid social disfarçado.
Há ainda um setor que argumenta que exageramos, pois o sistema já está sendo reformado. O problema é que flexibilizar para algumas cidades pequenas para fornecer mão de obra barata, enquanto as megacidades mantêm o cerco, não resolve o problema. É como pintar as grades da prisão e dizer que está tudo bem.

“Vida longa ao pensamento de Mao Tse-tung”, painel clássico na China, exaltando o legado maoísta. Foto: Weichen Tian
É possível mudar o hukou?
Não é impossível mudar o hukou, mas as chances são minúsculas. Para conseguir fazer isso de modo legal, o processo depende do tipo de mudança e das regras locais e é preciso atender a critérios rigorosos. Para mudar do campo para cidades pequenas e médias, é menos difícil, pelos motivos que já mencionamos. Desde 2014, o governo incentiva essa migração.
Entretanto, é preciso comprar um imóvel na cidade com um valor determinado pelo Estado, ter um emprego estável com contrato formal e, em alguns casos, investir. Acontece que a desigualdade social gerada pelo próprio sistema impede, na prática, que se cumpram os critérios.
Mudar para megacidades é quase impossível. Na maioria dos casos, tem que ter formação superior e um emprego qualificado em empresas estatais ou multinacionais. Estas empresas também podem patrocinar determinado migrante se tiverem interesse em contratá-lo, o que raramente acontece.
Em casos mais raros ainda, é possível obter o hukou por meio do casamento, mas a fila é enorme, e os limites maiores ainda. Por fim e em número quase inexistente, pessoas que são consideradas capazes de fornecer contribuições extraordinárias, como cientistas e atletas de elite, podem requerer a troca do hukou.
Alguns lugares usam um sistema de pontos baseado em educação (quanto mais alto o diploma, mais pontos), salário (quem ganha mais tem vantagem), tempo de contribuição previdenciária, doações e voluntariado.
Em todos os casos, o trabalhador vai enfrentar uma longa espera. Em Pequim, pode chegar a mais de dez anos, mesmo cumprindo todos os requisitos.
Toda essa situação deu origem a uma série de práticas ilegais. Os subornos, embora já tenham sido mais comuns e hoje sofram uma fiscalização mais dura, ainda existem, sobretudo porque magnatas acabam comprando o seu a um preço alto.
Jovens migrantes e intelectuais chineses têm questionado cada vez mais o hukou, argumentando que ele cria um sistema de castas incompatível com a sociedade moderna e o discurso oficial de “prosperidade comum” de Xi Jinping.
Voltando a Au Loong-yu, “não é a economia que define o Estado. Em vez disso, o caráter de classe do Estado deve ser julgado por critérios políticos”. O hukou nada mais é que uma ferramenta política da ditadura a serviço do capitalismo. É uma herança maoísta que precisa ser eliminada. O problema é que Mao se foi, mas a ditadura não – e o capitalismo sabe usá-la muito bem.
Saiba mais
Last Train Home
Documentário (2009)
O filme trata de migrantes que viram pais visitantes por causa do hukou. Um casal de operários embarca numa viagem para casa para o Ano Novo Chinês, junto com outros 130 milhões de trabalhadores migrantes, para se reunirem com os seus filhos e lutar por um futuro. Sua história invisível se desenrola enquanto a China se torna uma superpotência mundial. Direção: Lixin Fan
Ode to Joy
Série (2016)
No 22º andar de um prédio residencial em Xangai, cinco mulheres de diferentes origens começam a compartilhar moradia e vivências. No início desconfiadas umas das outras, elas descobrem, aos poucos, experiências em comum e formam laços profundos. Ao se apoiarem nos desafios pessoais, profissionais e sociais, elas aprendem lições valiosas sobre amizade, força e empatia. Baseada no romance homônimo de A Nai.
Fontes
Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS) – http://cass.cssn.cn
AU, Loong-yu. Hong Kong em revolta: a batalha nas ruas e o futuro da China. São Paulo: Editora Sundermann, 2022.
Banco Mundial. Urban China: Toward Efficient, Inclusive, and Sustainable Urbanization. Relatório, 2014. Disponível em: https://www.worldbank.org
CHAN, Kam Wing. China’s Hukou System: Markets, Migrants, and Institutional Change. Em: The China Quarterly. Disponível em: https://www.cambridge.org
Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (NDRC) – https://www.ndrc.gov.cn
Ministério da Segurança Pública da China (MPS) – http://www.mps.gov.cn
People’s Daily (jornal do Partido Comunista) – http://en.people.cn
Sixth Tone – https://www.sixthtone.com
South China Morning Post (Hong Kong) – https://www.scmp.com