Sobre o bloco da ‘alternativa de reconciliação nacional’
A “alternativa” à anistia é uma impostura, porque anistia é, além de ser “mão estendida” para que prevaleça a versão mentirosa sobre o 8/1, ou um ignóbil “meio-termo” entre a mentira e a verdade.
O senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), líder do governo no Congresso, apareceu na TV nesta quarta-feira, 30, ao vivo, dizendo abertamente que o governo Lula está aberto a uma “alternativa de reconciliação nacional”, horas depois de o mesmo Randolfe falar publicamente em “mão estendida para a conciliação”.
O assunto é a conspiração golpista de 2022 para impedir a posse de Lula e o rebote do complô frustrado: o brutal assalto de 8 de janeiro de 2023 à Praça dos Três Poderes.
A “alternativa” à qual Randolfe se refere é um projeto de lei do senador-delegado Alessandro Vieira (MDB-SE), lavajatista que caiu nas graças do campo progressista quando atuou como delegado-senador na CPI da Covid, inquirindo like a pro os ajudantes do genocídio.
Encomendado pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), o PL de Alessandro Vieira prevê a absorção do crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito pelo crime de golpe de Estado.
Hoje, os dois crimes têm penas previstas, somadas, de até 20 anos de prisão. O PL de Vieira prevê, na fusão, até oito anos de xadrez. Deve ser um caso único na história moderna em que após um crime violento, ou dois, de grande repercussão – e crimes políticos -, um país discute a sério não o aumento, mas a redução, e para menos da metade, das penas previstas para esses crimes.

Alessandro Vieira na CPI da Covid. Foto: Leopoldo Silva /Agência Senado
Portanto na mão inversa da miríade de propostas legislativas de endurecimento penal para aviõezinhos, trombadinhas, pichadores, etc, o PL de Vieira prevê abrandamento de pena para quem se presta alegremente a “massa de manobra” de general de dez estrelas que fica atrás da mesa com o cu na mão, esperando decreto de GLO.
Mas o que salta aos olhos no projeto de Vieira é menos a redução de pena para os soldados civis do golpismo (a rigor, sua saída livre da prisão), a título de garantir – e garante? – xadrez para os cabeças do golpe, e mais o impedimento à “atribuição de responsabilidade multitudinária ou coletiva” em ação, execução, tentativa campal de golpe de Estado.
“A sentença ou acórdão condenatórios deverão, sob pena de nulidade, descrever de forma individualizada a conduta do agente, bem como demonstrar o nexo causal entre sua ação ou omissão e o resultado ilícito, vedando-se a atribuição de responsabilidade multitudinária ou coletiva”, diz o projeto de lei.
Ou seja: se engrossou a massa que saiu de acampamento golpista, caminhou cinco quilômetros gritando slogans golpistas, rompeu barreira policial e invadiu ensandecida a Praça dos Três Poderes; se estava lá, de verde, amarelo, azul e branco, para forçar decretação de GLO, não faz tão mal, desde que o agente não tenha sido filmado, flagrado, na conduta individualizada de derrubar do pedestal o relógio de Dom João.
Mesmo assim, tendo em vista que o PL de Alessandro Vieira parece exigir, para condenação por golpe de Estado, a consumação do golpe de Estado – “o nexo causal entre a ação e o resultado ilícito” – o agente acaba respondendo apenas por “deterioração de patrimônio histórico”, que foi afinal o que Luiz Fux propôs para a cabeleireira Débora Rodrigues: condenação apenas por “deterioração de patrimônio histórico”, pena de um ano e seis meses de prisão, ainda que Débora tenha sido fotografada pintada de Coringa e inscrevendo seu intento golpista na Estátua de Justiça.
A “alternativa” à anistia de Alessandro Vieira e Davi Alcolumbre é uma impostura em si mesma, porque a tal “alternativa” anistia é.
E, assim sendo, ela consagra uma outra mentira, mais uma, no altar da realpolitik: a da inofensividade da tropa de assalto do 8/1, ainda que haja diferença entre comandados e comandantes e, portanto, deva mesmo existir distinção entre as imputações penais.
Essa diferença, porém, é um tanto óbvia pelo menos desde a formação das Sturmabteilungen, as “Tropas de Assalto” que, de assalto em assalto – como o Putsch da Cervejaria -, foram componente essencial para a chegada de Hitler ao poder na Alemanha.
De modo que nada justifica manipular esta diferença como manipulou, por exemplo, Múcio Monteiro, recentemente, no programa Roda Viva: “tem gente que armou e tem aqueles que estavam lá tirando foto de celular”.

Brasília, dezembro de 2023: o ministro da Defesa, José Múcio, participa da cerimônia de apresentação dos oficiais-generais das Forças Armadas recém-promovidos. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
No mesmo dia, no mesmo programa, o ministro Múcio defendeu soltar os “inocentes” do 8/1 como forma de “pacificar o país”.
A julgar pelas declarações das últimas horas do líder do governo no Congresso, aquelas sobre “conciliação” ou “reconciliação” nacionais, parece que a mosca-Múcio picou alguém de jeito no Palácio do Planalto.
Múcio e Randolfe, com seu ânimo para o recongraçamento; Alcolumbre e seu ghostwriter lavajatista, com sua alternativa de mentira à anistia, mão estendida para que prevaleça a versão mentirosa sobre o 8/1, ou um ignóbil “meio-termo” entre a mentira e a verdade; o bloco todo da “alternativa de reconciliação nacional”, afinal, deveria ser posto sentadinho para ouvir o que disse em 2012 a juíza Claudia De Lima Menge, da 20ª Vara Cível Central de São Paulo, quando condenou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra a pagar R$ 100 mil de indenização pela tortura e morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino no DOI-CODI.
Para ouvirem a juíza citar um parlamentar chileno sobre a dupla dimensão, individual e coletiva, do direito à verdade:
“A consciência moral de uma nação demanda a verdade porque apenas com base na verdade é possível satisfazer demandas essenciais de justiça e criar condições necessárias para alcançar a efetiva reconciliação nacional”.