Dias de fúria, por João Silva
Motivos dos ataques de Lula aos juros altos não foram resolvidos, mas a febre do dólar diminuiu
Dos ataques do presidente Lula aos juros altos, que julga ser maquinação do Banco Central independente em conluio com especuladores do mercado financeiro, sobraram o espanto da taxa de câmbio chegando a irreais R$ 5,70 e a certeza de que cabeça quente e impulsividade são uma combinação com consequências desastrosas.
Aparentemente convencido por economistas reunidos pelo ministro Fernando Haddad a maneirar os seus ataques contínuos ao BC e permitir o anúncio de algumas promessas para desacelerar o ritmo dos gastos públicos, Lula se aquietou, e o dólar refluiu.
Atribuiu-se a insatisfação presidencial a pesquisas indicando que a opinião média do cidadão segue desfavorável ao governo, apesar de indicadores razoáveis sobre o nível de emprego e de renda, com implicações para os candidatos petistas nas eleições municipais, em outubro. Isto pode ter sido o fato detonador, não a causa.
Intuitivo, o presidente sabe que há muitas esquisitices. O custo do crédito, formado em parte pela taxa Selic definida pelo BC a partir da meta de inflação definida pelo seu próprio governo, é uma das fontes do mal-estar que carcome as entranhas econômicas e sociais, mas não explica tudo e talvez seja a menos relevante.
Importante foi a demora para entender que a orientação de seus assessores políticos a voltar a pautar o noticiário, até então sob controle da oposição e dos chefes do legislativo, depende muito da pauta. Questões de juros e contas fiscais, ligadas umbilicalmente ao mercado de divisas, não se prestam a proselitismos políticos.
Tais temas são postos em baila quando há propostas para comunicar ou ideias a debater. Não é bem a autonomia do BC uma dessas pautas críticas para a melhoria dos instrumentos da macroeconomia até por ser dependente de orientação superior do CMN, o Conselho Monetário Nacional, liderado pelo ministro da Fazenda. Quantos sabem disso?
Poucos. A omissão do CMN é um indicativo da incompreensão sobre o seu papel na governança da macroeconomia. Tanto quanto do presidente do BC falar sobre política fiscal, um tema fora de sua alçada. Ou a timidez de seus pares na autarquia, todos com iguais direitos e mandato, não submetidos a regras de hierarquia durante, por exemplo, as votações do Comitê de Política Monetária (Copom).
Nem tão feia nem fulgurante
A realidade não é tão feia quanto os movimentos mambembes da taxa cambial nos últimos dias quiseram sugerir, supondo que os voleios dos traders do mercado financeiro a cada bronca de Lula esvaneçam, nem fulgurante quanto ele quer fazer crer. O problema para valer é sério, mas o juro de dois dígitos é mais consequência que causa.
O juro à vontade do carregador do estoque dos papéis de dívida do Tesouro Nacional mudará de mãos quando seu total deixar de crescer no piloto automático. Como proporção do PIB, a dívida bruta hoje é de 76,8%, 4,6 pontos percentuais acima do nível de um ano atrás.
Que Lula fosse um presidente mãos de tesoura e pouco poderia ter feito para segurar esse ritmo. Contra a vontade de Bolsonaro, foi o que o ministro Paulo Guedes fez por um tempo. Mas o fez em cima da coxa, trancando aumentos salariais do funcionalismo, retendo concursos públicos e atrasando administrativamente os pedidos de aposentadoria e pensões. Não houve nada estrutural, tal como também não houve no governo Temer, já que o teto de gastos era o que diz o nome, um teto, não uma reforma do sistema público.
O estilo fiscal de Lula, portanto, não difere muito das gestões anteriores, o que inclui seus dois primeiros governos e de Dilma. O que o atrapalha é a boca, ao querer renomear categorias de gasto com saúde e educação como investimento, cujo conceito significa aumento da entrega de bens e serviços públicos e privados, e dizer que não fará ajuste do orçamento cortando despesa social. Não deve cortar mesmo, o que não significa que não haja o que aprimorar.
Copom e Tesouro em sintonia
Se dividirmos o tempo até a próxima eleição geral em 2026 em três blocos, sendo o curtíssimo prazo este ano, curto prazo ano que vem e médio prazo até a virada para 2027, as coisas ficam mais claras.
O mandato do presidente do BC, Roberto Campos Neto – que Lula pôs na categoria de desafeto depois que foi votar vestindo camiseta da Seleção, um símbolo nacional apropriado por Bolsonaro -, acaba no fim do ano. O quanto antes indicar seu substituto ao escrutínio do Senado e ele se impuser aos críticos, mais autonomia em relação ao mercado ambos terão. É o que há para fazer no curtíssimo prazo.
Mais que isso apenas se Haddad for autorizado a contingenciar um volume gordo de despesas da lei orçamentária atual, algo da ordem de R$ 40 bilhões. Não vai, mas vale a intenção, até para não se desperdiçar a imagem de bom moço cultivada por parte da imprensa.
Em paralelo, o CMN poderia ser ampliado para Conselho Monetário e Fiscal Nacional, CMFN, pondo o secretário do Tesouro ao lado dos ministros da Fazenda e do Planejamento e do presidente do BC. As duas políticas são complementares uma da outra e não adversárias.
Para inovar com substância, poderia também ser criado um conselho consultivo de economistas notáveis em ambas as áreas, dois a três, para não virar plenária de partido, e uma primeira missão: passar a limpo os modelos analíticos e prospectivos usados pelo Copom.
Só se queixar não resolve
Ah! Vale também a área de controle dos projetos de infraestrutura atentar para a exaustão de balanço dos candidatos a participar dos leilões agendados de concessões de rodovias, saneamento e outros.
Os últimos 30 anos de juros colossais exauriram as finanças dos investidores potenciais para algo mais do que exige o Tesouro para emitir e refinanciar seus títulos, um sugadouro da tesouraria de bancos e empresas. É duro, além disso, disputar o funding de quem recebe IPCA+6% praticamente sem riscos. Depois da crise da Lava Jato, as grandes da construção se foram e os bancos se fecharam.
Restaram empresas boas, sem dívida nem passivo reputacional e com bom acervo técnico, mas pequenas para o que se impõe. Há soluções para além da discussão sobre juros, cuja saída é mais estrutural e possível a médio prazo. O governo precisa aconselhar-se com quem lhe possa suprir a carência de estratégias financeiras. Com jeito e pragmatismo, muito mais pode ser feito. O que não dá é fazer da queixa um meio de vida sem nem ao menos tentar ser diferente.
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