No momento de sua morte, sinto-me no dever de recomendar o livro de Antônio Delfim Netto, O Mercado e a Urna. São 150 páginas dedicadas a explicar as relações entre a lógica econômica do capitalismo e as aspirações dos cidadãos à autonomia diante das esferas do poder e do dinheiro e a uma vida boa e decente. Alguém poderia sugerir – e não estaria errado – se dissesse que, nos momentos de transformação, a luta política vai escolher as normas e os valores que, afinal, vão presidir os nossos destinos coletivos e individuais.

O professor Delfim Netto e eu divergimos muito no passado, pois no tempo da ditadura militar estivemos em campos opostos. Nos tempos de hoje, depois da anistia que nos concedemos mutuamente, mantivemos um diálogo afetuoso (ainda que às vezes dissonante) sobre as questões econômicas, brasileiras e internacionais. Em suas colunas na mídia – sobretudo em CartaCapital –, mas também em suas aulas e palestras, Delfim aderiu plenamente à ideia de que a democracia é fundamental para corrigir os desmandos do mercado. Democracia no sentido mais amplo, com inclusão social e diminuição da desigualdade econômica. Por isso, ele diz que o único instrumento para corrigir as desigualdades sociais são as urnas. Despido de partidarismos, Delfim transformou-se juntamente com o Brasil. Prosseguiu sua vida como homem público, muito influente tanto na opinião conservadora quanto na de esquerda. Ele dizia no passado que era socialista fabiano.

Em tempos recentes, Delfim, Guido Mantega, Walter Appel e o escriba destas mal traçadas sustentamos conversações semanais a distância. Entre os temas tratados, lembro-me bem, cuidamos de discorrer a respeito do Iluminismo, momento da história da humanidade que nos legou uma modernidade que avança de forma contraditória, impulsionada pela tensão permanente entre as forças e os valores da concorrência capitalista e os anseios de realização da autonomia de um indivíduo integrado responsavelmente na sociedade. Do ponto de vista ético, esse conflito se desenvolve entre a dimensão utilitarista da sociabilidade, forjada na indiferença do valor de troca e do dinheiro e os projetos de progresso social que postulam a autonomia do indivíduo, ou seja, reivindicam o direito à singularidade e diferença.

Em artigos publicados em nossa CartaCapital nos idos de 2008 e 2013, em sua peculiar ironia, Delfim deplorava o mandonismo dos mercados financeiros em seus propósitos de comandar a economia, a política e a vida dos cidadãos.

“As vigarices financeiras reveladas pelos subprimes foram: 1. Feitas debaixo do nariz das agências oficiais controladoras. 2. Ignoradas pelas fajutas agências classificadoras de risco. 3. Produtos da incapacidade de os Bancos Centrais saberem como incorporar os preços dos ativos nas suas formuletas de controle da inflação. Descobertas, estabeleceram a desconfiança geral: cada agente sabe o que escondeu no seu balanço, mas não sabe o que o outro tem escondido…

“O malfeito, que se imaginava não seria tolerado após as dramáticas lições da Grande Depressão dos anos 30, ressurgiu com força na última década do século XX e na primeira década do século XXI, quando os mercados se deixaram dominar pelas finanças.

“A História mostra com clareza: com o tempo, os sistemas financeiros tomam conta não apenas do setor produtivo, como do próprio sistema político, elegem seus representantes e organizam maiorias parlamentares que sustentam o Poder. Prova disso foi o domínio do Congresso americano, tornado incapaz de decidir as medidas destinadas a controlar o sistema financeiro.

Apesar das fantasias mercadistas, o acesso ao clube dos bem nutridos é cada vez mais difícil

“Todas têm aprovação muito difícil e, depois, não se realizam. Os sistemas financeiros tomam conta não apenas do setor produtivo, mas do próprio sistema político: eles elegem seus representantes e organizam as maiorias que sustentam o Poder.”

Os acontecimentos recentes mostram, que, apesar das fantasias mercadistas, o acesso ao almejado título de sócio do clube dos bem nutridos torna-se cada vez mais difícil. Mesmo nos países adiantados cresce o número de cidadãos e cidadãs que não concordam com a mão única que pretendem impor às suas vidas. A sensação entre as classes não proprietárias é de que, de uns tempos a esta parte, aumentou a insegurança. Além do desemprego crônico e endêmico, os que continuam empregados assistem ao encolhimento das oportunidades de um emprego estável e bem remunerado. Não bastasse isso, estão sob constante ameaça de definhamento as instituições do Estado do Bem Estar, que ao longo das últimas décadas vinham assegurando, nos países desenvolvidos, direitos sociais e econômicos aos grupos mais frágeis da sociedade.

Tal sensação de insegurança é o resultado da invasão, em todas as esferas da vida, das normas da mercantilização e da concorrência, como critérios dominantes da integração e do reconhecimento social. Nos países em que os sistemas de proteção contra os frequentes “acidentes” ou falhas do mercado são parciais ou estão em franca regressão, a insegurança assume formas ameaçadoras para o convívio social. A expansão da informalidade e da precarização das relações de trabalho – e a desagregação familiar que as acompanha – tendem a avançar para a criminalidade eventual e, depois, para o crime organizado. Os subsistemas socioeconômicos que vivem da atividade criminosa ou ilegal passam a ocupar o espaço deixado pelo desaparecimento das oportunidades de vida antes oferecidas pela economia “oficial”.

O século XX terminou os seus dias com um cabedal de certezas menos imponente do que a herança que teria recebido do século XIX. Mas é bom não esquecer que foi também um período dedicado à luta pelos direitos sociais e econômicos, pela convivência e da pertinência cívicas consolidadas na construção de instituições que, como vislumbrou Delfim, buscam equilibrar a voz das urnas e o poder do mercado. •

Publicado na edição n° 1324 de CartaCapital, em 21 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Homenagem ao amigo Delfim’

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Última Atualização: 15/08/2024