O desabamento do teto da Igreja de São Francisco, no Centro Histórico de Salvador, ocorrido no início deste mês, acendeu um sinal de alerta para o estado de conservação dos inúmeros monumentos tombados no Brasil, grande parte em situação precária e com risco iminente de novos acidentes. Após a tragédia, que vitimou uma jovem de 26 anos e deixou cinco feridos, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, conhecido pela sigla Iphan, e a Defesa Civil vistoriaram 106 imóveis na capital baiana. Oito igrejas foram interditadas, devido ao elevado risco de colapsar.

Os principais problemas identificados foram deterioração em estruturas de madeira das coberturas e assoalhos, oxidação de ferragens com desprendimento de reboco em paredes e lajes, infiltrações generalizadas e fissuras e rachaduras em alvenarias. Muitos imóveis antigos estão abandonados e sem conservação, uma espécie de tragédia anunciada. A Igreja de São Miguel, situada no Pelourinho, mesma região onde fica a de São Francisco, está fechada há dez anos e a degradação só aumenta.

“O que aconteceu na Igreja de São Francisco não é um caso isolado nem um problema novo. A de São Miguel foi fechada em 2015 porque corria risco de desabar, mas, de lá para cá, nada foi feito. Na verdade, ela está em um estado muito pior.” destaca o pesquisador Nivaldo Andrade, professor da UFBA e integrante do Conselho Construtivo do Iphan. “É bem verdade que existe um problema de ausência de recursos para restaurar os monumentos tombados, além da ausência de profissionais para fiscalizar, mas tem outro problema que não está aparecendo com muita clareza: esses imóveis são privados, a responsabilidade legal é do proprietário. Não é justo empurrar o problema a um órgão público com reduzido quadro de funcionários e orçamento pífio. O Iphan não tem condições de resolver esse impasse.”

Outras oito igrejas de Salvador foram interditadas após vistorias do Iphan e da Defesa Civil

Incontáveis monumentos tombados pelo Brasil afora estão em situação semelhante àqueles do Centro Histórico de Salvador. Um acidente em um bem tombado, como o incêndio que devastou a Biblioteca Nacional em 2018 ou mesmo o desabamento na Igreja de São Francisco – também conhecida como a Igreja do Ouro, tamanha a quantidade do metal na sua arquitetura – representa também o apagamento de uma era, como explica o historiador Rafael Dantas. “Naquele forro que desabou tínhamos recortes de um tempo, de uma sociedade que girava em torno da Igreja Católica. Esses templos eram os principais pontos referenciais das grandes cidades na época da Colônia. Preservar uma igreja como essa não é apenas uma questão de fé. É preservar um elemento do que foi o Brasil, da sociedade como um todo”, afirma. “A Igreja de São Francisco de Assis é um dos mais belos e importantes exemplares da arte barroca nas Américas. A arquitetura bebe na influência ibérica, mas com detalhes que tocam outras culturas. É possível ver traçados do mundo árabe, da presença do trabalho de diversos artistas. O forro tinha detalhes com geometria única, madeira policromada, folhas de ouro, passagens da vida de Nossa Senhora, tudo da mais rica beleza.”

Com o título de Patrimônio da Humanidade, reconhecido pela Unesco em 1982, o Sítio Histórico de Olinda, em Pernambuco, sofre um processo de degradação há anos e representa um risco permanente de acidentes, devido não apenas à falta de conservação de seus casarios e monumentos religiosos por parte de seus proprietários, mas também pela situação geográfica e geológica no qual foi edificado. A Cidade Alta foi toda construída em meio a colinas e muito próximo à zona costeira, isso em meados do século XVI. Com as intervenções urbanas e a erosão provocada pela maresia, é grande a chance de deslizamentos de terra e desabamento dos imóveis.

“Olinda tem um problema sério de encostas, que ameaça tanto os imóveis privados quanto as igrejas. É preciso entender o funcionamento do solo. Não é uma coisa que você vê imediatamente, mas as consequências podem ser bastante desastrosas”, explica a pesquisadora Natália Vieira de Araújo, coordenadora do Programa de Pós-Graduação e Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “A gente tem uma situação complicada de conservação. Muitas igrejas têm dificuldade para custear a manutenção, pela dimensão dos monumentos e pelas exigências técnicas na restauração. E a responsabilidade da gestão municipal com esse sítio, que é considerado um patrimônio mundial, tem sido bastante difícil.”

Impasse. Proprietários de imóveis tombados se queixam dos elevados custos de manutenção e restauro – Imagem: iStockphoto

Juliana Barreto, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, tem uma pesquisa recente que trata especificamente sobre os casarios do Sítio Histórico de Olinda e cita a vulnerabilidade do conjunto. “Olinda tem uma localização específica e privilegiada, situada no alto dos morros e das colinas históricas, além da proximidade com o mar. Foram feitas várias intervenções de quebra de edificações, de perda territorial na área costeira, tem a questão da erosão e dos ventos dominantes que afetam principalmente os monumentos mais próximos do litoral, tudo isso compromete a estrutura geológica do local”, diz. “Quando a gente consegue ver fissuras, rachaduras nos monumentos, aquilo não é só por ser uma construção secular. Tem toda uma questão ambiental agregada, o tipo de solo, a composição geológica das colinas que permite a formação de cavernas subterrâneas, tudo isso afeta a estabilidade dos monumentos.”

Símbolos religiosos e turísticos de Olinda, o Mosteiro de São Bento, o Convento de São Francisco e as igrejas do Carmo e do Amparo, além da Rua do Amparo, aparecem como os locais mais ameaçados de deslizamentos. É comum os proprietários dos casarios expandirem seus imóveis de forma irregular, ocupando as encostas, o que aumenta a sobrecarga estrutural e as chances de desabamento. “O patrimônio cultural dos séculos XVII e XVIII é muito sensível, não só porque ele é mais antigo, mas também porque a maioria foi construída com madeira e terra, muito suscetíveis à umidade e ao ataque de insetos, como os cupins. Cabe aos proprietários fazerem a conservação preventiva, um monitoramento, ano a ano, que garanta os reparos necessários. Mas não há como pensar a conservação do bem isolado de sua realidade sociocultural e econômica e do lugar geográfico e urbano onde está instalado. Assim, se um prédio está em um local degradado, não basta restaurá-lo sem uma preocupação de tratar seu entorno, é uma questão de planejamento urbano”, explica Flávio Carsalade, professor da UFMG e presidente do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos)­ no ­Brasil, uma organização não governamental global associada à Unesco.

Carsalade reforça a responsabilidade do proprietário na conservação do bem cultural e cita a importância do apoio institucional nesse processo. “O dono do imóvel não perde a propriedade, ele continua responsável pela conservação do imóvel e responde até criminalmente pela sua destruição. Em caso de incapacidade financeira, o Estado pode oferecer recursos para a restauração”, diz. O papel do proprietário na conservação do imóvel e a ideia de uma gestão compartilhada estão definidos na Constituição Federal de 1988. O Artigo 216 da Carta Magna cita o que constitui o patrimônio cultural, tanto material quanto imaterial ou paisagístico, seja conjunto ou individual. Para o pesquisador Jorge Luís Stocker Júnior, coordenador do projeto Campanário e doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela ­UFRGS, é necessário implantar os instrumentos previstos na legislação, os quais não deixam dúvida quanto ao papel de cada um dos entes envolvidos na conservação do patrimônio histórico e cultural.

O Sítio Histórico de Olinda está ameaçado não só por falta de conservação. A estrutura do solo também é problema

“Eu acredito muito no projeto de gestão compartilhada que está desenhado na nossa Constituição, no Plano Nacional de Cultura e no próprio Instituto das Cidades. Ainda que um imóvel tombado siga sendo privado, ele representa o direito à memória e cumpre um papel social. Então, é de se esperar que tenha apoio também por parte do Poder Público e da participação ativa da sociedade civil”, defende, citando também a responsabilidade dos governos estaduais e municipais.

Vinculado ao Ministério da Cultura, o Iphan é responsável pela fiscalização periódica dos imóveis e conjuntos urbanos tombados em nível federal. O órgão foi contemplado no Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2023, com 144 obras e 105 projetos para recuperação de bens culturais, dos quais 45 estão no Nordeste, 13 deles na Bahia. Segundo o Iphan, as duas linhas de ação no Novo PAC somam investimentos de 771 milhões de reais até 2026. Com um total de 1.202 bens tombados em nível federal, a estrutura ínfima do Iphan conta com cerca de mil servidores, 27 superintendências, 37 escritórios técnicos e seis unidades especiais. •

Publicado na edição n° 1350 de CartaCapital, em 26 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘História em ruínas’

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Last Update: 20/02/2025