O direito do Trabalhador e da Trabalhadora no contexto do uso ‘INseguro e DEScontrolado’ do amianto no Brasil

Por Hermano Albuquerque de Castro e Fernanda Giannasi, na revista Saúde em Debate

O amianto, também conhecido como asbesto, é uma fibra mineral natural com alta resistência mecânica, térmica e química. Essas características promoveram seu amplo uso na indústria brasileira por mais de 100 anos, especialmente nos setores da construção civil, têxtil, automotivo.

Existem duas variedades comerciais principais de amianto: as serpentinas (crisotila ou amianto branco) e os anfibólios, estes últimos banidos no Brasil desde 1991 pelo Anexo 12 da Norma Regulamentadora do Ministério do Trabalho (NR-15) [1].

A variedade crisotila foi a espécie amplamente utilizada na construção civil e em produtos industriais no Brasil. Sua popularidade é advinda da abundância desse mineral fibroso na natureza, facilidade de extração e beneficiamento e, portanto, por seu baixo custo.

Entretanto, crescentes evidências científicas apontaram os seus graves riscos associados à saúde humana, desmistificando a tese empresarial que atribuía somente aos anfibólios a nocividade do mineral.

Estudos consolidados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam mais de 200 mil mortes por ano em todo o mundo por exposição ocupacional e ambiental ao amianto [2].

A OMS e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomendam o banimento total de todas as formas de amianto em razão de seus efeitos adversos à saúde, como as Doenças Relacionadas ao Amianto (DRA), entre elas, a asbestose, as doenças pleurais e as malignas, como o câncer de pulmão e colorretal e de outros órgãos, por exemplo, laringe e ovário, assim como o mesotelioma ou também chamado ‘câncer do amianto’[3,4].

A Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (Iarc) da OMS classifica o amianto como agente reconhecidamente cancerígeno para os seres humanos. No Brasil, a Lista Nacional de Agentes Cancerígenos para Humanos (Linach) inclui o amianto no grupo de agentes comprovadamente causadores de câncer [5].

Associada a uma série de mobilizações sociais, jurídicas e legislativas, caminhou-se na direção do banimento total de todas as formas de amianto no País, como ocorreu desde o final do século XX em vários países, que já vinham reduzindo ou banindo totalmente os usos do amianto em mais de 3 mil produtos industriais. No entanto, o que temos de passivo ambiental e humano no mundo é imensurável.

No Brasil, a trajetória normativa do amianto é resultante de mobilizações sociais, jurídicas e legislativas, além de ser marcada por disputas entre a proteção à saúde dos trabalhadores e os interesses econômicos de setores produtivos.

O marco normativo nacional de maior impacto na defesa dos interesses corporativos foi, indubitavelmente, a aprovação da Lei nº 9.055/1995 e seu Decreto regulamentador nº 2.350/97, que permitiram o uso ‘controlado e seguro’ da variedade crisotila, em oposição a diversos projetos de lei que tramitavam na Câmara dos Deputados com o propósito do seu banimento, alguns de implementação imediata e outros em médio e longos prazos.

Foi apenas em 24 de agosto de 2017 que o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3937/2008, que questionava a lei estadual paulista de banimento do amianto, reconheceu a constitucionalidade da lei em discussão e a inconstitucionalidade incidental do art. 2º da Lei 9.055/95 [6,7,8], pois esse dispositivo não estava na pauta deste julgamento, e sim da ADI 4066, o que constituiu um imenso avanço na direção do banimento total no País, que só veio a ocorrer, de fato, em 29 de novembro de 2017, durante o julgamento das ADI 3406 e 3470 contra a lei de banimento do estado do Rio de Janeiro.

Tal decisão alcançou a eficácia erga omnes (para todos os entes federado) e vinculante (para todos os órgãos dos Poderes Judiciário e Executivo).

O presente artigo se propõe a mapear e a analisar criticamente um conjunto de leis estaduais, decisões judiciais e normas complementares sobre produção e uso de amianto, explorando as diferenças regionais, os fatores políticos e sociais que influenciaram o processo e as implicações do banimento para a saúde pública e a justiça ambiental, tendo como premissa o direito humano da vida em ambiente saudável.

Material e métodos

Este estudo adotou uma abordagem qualitativa, fundamentada na pesquisa documental, centrada na análise de legislações estaduais e federais, decisões judiciais, e publicações institucionais sobre o uso e banimento do amianto no Brasil para compreender a trajetória jurídica, política e social do uso do amianto no Brasil e seus impactos na saúde dos trabalhadores e no meio ambiente.

A pesquisa qualitativa é particularmente adequada para investigar fenômenos complexos em seu contexto natural, permitindo uma compreensão aprofundada das dinâmicas sociais, jurídicas e políticas envolvidas no banimento do amianto.

A análise documental, por sua vez, é um método robusto que permite a coleta e interpretação sistemática de dados contidos em documentos escritos, fornecendo insights sobre eventos passados, tendências e perspectivas de diferentes atores sociais. O referencial teórico está ancorado na perspectiva da justiça ambiental e do direito à saúde.

A delimitação temporal abrange o período de 1991 a 2025. Esse recorte foi definido por marcos significativos na legislação brasileira sobre o amianto:

— o banimento dos anfibólios e a vigilância dos trabalhadores expostos até 30 anos após findo o contrato de trabalho em 1991, entre outros avanços, pelo Anexo 12 da NR-151;

— as informações dos trabalhadores expostos e a vigilância pelo Sistema Único de Saúde (SUS), instituídas pela Lei nº 9.055/95 e a Portaria nº 1.851/2006 [9], ainda deficientes no cumprimento; e os

— avanços e retrocessos normativos e judiciais até o ano de 2024. O período de levantamento dos documentos ocorreu entre dezembro de 2024 e junho de 2025.

O levantamento utilizou algumas categorias previamente definidas: i) tipo de documento; ii) abrangência geográfica e temporal; iii) conteúdo normativo; iv) desdobramentos jurídicos e sociais.

As fontes documentais foram selecionadas com base na relevância normativa, judicial e institucional, incluindo bases jurídicas, portais de Assembleias Legislativas, Tribunais de Justiça Estaduais, relatórios da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), decisões do STF e normas federais, entre outros de maior relevância.

A seleção dos documentos foi realizada pelos autores do artigo, com experiência em saúde do trabalhador e políticas públicas. Foram priorizados documentos com impacto direto sobre a proteção da saúde das trabalhadoras e dos trabalhadores expostos ao amianto, banimento do uso e medidas de reparação.

● Normas jurídicas (leis federais e estaduais, decretos): foram selecionadas as leis federais e estaduais que regulamentaram ou proibiram o amianto no Brasil dentro do recorte temporal estabelecido, buscando compreender a evolução legislativa e as disputas de competência.

● Decisões judiciais: priorizou-se o levantamento das ADIs e outros julgamentos relevantes do STF que trataram do amianto, especialmente aqueles com efeito vinculante e erga omnes, como os de 2017. Também foram consideradas ações em tramitação que evidenciam resistências ao banimento, como a ADI 6200 contrária à Lei nº 20.514/2019 de Goiás, que prevê a exploração do mineral para fins de exportação.

● Publicações complementares e relatórios de organizações civis: incluíram-se relatórios e publicações da Abrea devido ao seu papel central na mobilização social e na produção de evidências sobre os impactos do amianto, além de sua representatividade na luta pelo banimento.

● Normas federais complementares: foram analisadas normas regulamentadoras e outros documentos técnicos de órgãos como os Ministérios do Trabalho e da Saúde e da Fundação Jorge Duprat Figueiredo, de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), que detalham aspectos da exposição, vigilância e desamiantagem.

As principais bases e plataformas consultadas para o levantamento foram:

● Bases jurídicas: LexML, JusBrasil, sites das Assembleias Legislativas e Tribunais de Justiça Estaduais.

● Publicações complementares: relatórios institucionais e publicações técnicas da Abrea, inclusive seu website e redes sociais.

Para melhor compreensão na apresentação dos dados analisados, o quadro 1 sintetiza os principais documentos e suas origens, ilustrando a diversidade de fontes que fundamentaram este ensaio.

A análise dos documentos foi realizada por meio de uma leitura crítica, buscando identificar marcos legais, decisões judiciais, argumentos utilizados e o contexto político-social em que foram produzidos. Os autores do presente ensaio foram os responsáveis pela leitura, que seguiu as seguintes etapas:

● Leitura exploratória: para uma compreensão geral do conteúdo e do contexto de cada documento.

● Identificação de categorias temáticas: priorizando informações relacionadas com legislação, decisões judiciais, impactos na saúde, mobilização social e resistência econômica.

● Análise de conteúdo: detalhamento dos argumentos, atores envolvidos, e desdobramentos jurídicos e sociais.

● Comparação e triangulação de dados: confronto das informações obtidas de diferentes fontes para identificar convergências, divergências e lacunas.

Os critérios de priorização do conteúdo analisado incluíram:

● Relevância jurídica: documentos que estabeleceram precedentes legais ou que foram objeto de debates significativos no STF.

● Impacto social e de saúde pública: informações que detalhavam os efeitos da exposição ao amianto e a resposta da sociedade civil e das instituições de saúde.

● Representatividade: documentos que refletiam a posição de diferentes atores (governo, empresas, trabalhadores, sociedade civil).

● Atualidade: prioridade para as decisões e legislações mais recentes, que delineiam o cenário atual do banimento.

Resultado

Direito dos trabalhadores expostos ao amianto

Do ponto de vista da responsabilidade civil e trabalhista, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) garantem ao trabalhador o direito a um ambiente hígido e seguro, de acordo com a CF/88 no seu art. 7º, XXII, e com as Normas Regulamentadoras do Capítulo V do Título II/ CLT. O Código Civil brasileiro, nos seus art. 186 e 927, define, respectivamente, o que é ato ilícito e quando alguém pode ser responsabilizado por danos causados a outra pessoa e a garantia de indenização por danos morais e materiais em casos de comprovada negligência empresarial, em ações por danos morais coletivos e individuais.

Dessa forma, um conjunto de leis apontam para garantias de reparação para os danos causados no trabalho. No caso do amianto, devido à exposição, que conduz a doenças e morte, o trabalhador tem direito aos benefícios previdenciários, tais como auxílio-doença acidentário (art. 59, nº 8.213/1991), aposentadoria por invalidez (se incapacitados permanentemente) e pensão por morte para familiares em casos de óbito, além da aposentadoria especial, que reduz o tempo de exposição com o objetivo de preservar sua saúde [10].

A promulgação da Lei nº 9.055/1995, que regulamentou o uso controlado do amianto crisotila no País [7], marcou o início de um movimento legislativo diferenciado em diversas esferas federativas. Nesse contexto, surgiram normas locais buscando estabelecer parâmetros mais restritivos, como a Lei nº 13.113/2001, da cidade de São Paulo, e, posteriormente, a Lei nº 12.684/2007, do estado de São Paulo.

A legislação paulista de 2007 adotou uma abordagem distinta ao enfocar especificamente a proibição da utilização do amianto em seu território, evitando assim questões relacionadas com a competência legislativa da União sobre normas gerais de extração e comércio.

Essa estratégia legislativa contrastou com as disposições de leis estaduais anteriores, como a Lei paulista nº 10.813/2001 e a Lei sul-mato-grossense nº 2.210/2001, que haviam sido objeto de questionamentos quanto à sua constitucionalidade perante o STF por abordarem matérias de exclusiva competência federal.

Esse processo evolutivo da legislação sobre o amianto demonstra como diferentes entes federativos buscaram, dentro de suas respectivas competências, estabelecer regras sobre o tema, refletindo preocupações com a saúde pública e o meio ambiente em seus territórios. A abordagem adotada pelo estado de São Paulo em 2007 representou uma alternativa legislativa que considerou os limites constitucionais da federação brasileira e os direitos do consumidor [11].

Entre 2001 e 2017, na mesma linha da segunda lei paulista de proibição do amianto, diversos estados aprovaram leis específicas banindo o amianto, tais como: Rio de Janeiro, Pernambuco, Rio Grande do Sul, entre outros.

No entanto, muitos desses dispositivos foram contestados por alegada afronta à Lei federal nº 9.055/1995, o que levou à judicialização do tema no STF em um longo debate jurídico na corte [12], culminando nos julgamentos histórico ocorridos em 2017 com ampla repercussão dentro e fora do País.

É importante mencionar que, entre as principais contestações às leis estaduais de banimento, as ADI 3356 (Pernambuco), 3357 (Rio Grande do Sul), 3406 e 3470 (Rio de Janeiro) e 3937 (segunda lei de São Paulo), ajuizadas por entidade representante de trabalhadores, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), sempre ocorreram sob o discurso público da defesa dos postos de trabalho, que seriam ‘supostamente’ eliminados com a proibição do amianto, o, que de fato, não ser verificou.

As Decisões do STF e seus Efeitos

No dia 24 de agosto de 2017, o Plenário do STF julgou improcedente a ADI 3937, ajuizada pela CNTI contra a Lei nº 12.687/2007, do estado de São Paulo, que proíbe o uso de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto no território estadual.

Os ministros também declararam, incidentalmente [11] a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei Federal nº 9.055/1995, que permitia a extração, a industrialização, a comercialização e a distribuição do uso do amianto da variedade crisotila no País e assentou a validade da lei estadual que proíbe o uso de qualquer tipo de fibra (crisotila ou anfibólio) sob o argumento de que os direitos à saúde e ao meio ambiente equilibrado são preponderantes sobre os interesses econômicos.

Em 29 de novembro de 2017, o STF deu continuidade ao julgamento das ADI 3406 e 3470, nas quais se questionava a Lei nº 3.579/2001, do estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a substituição progressiva dos produtos contendo a variedade crisotila (amianto branco).

As ações foram propostas pela CNTI sob a alegação de que a lei ofendia a livre iniciativa e por usurpação da competência privativa da União. A decisão pela constitucionalidade da lei teve efeito vinculante (para todas as instâncias do judiciário) e erga omnes (para todos), obrigando os estados a se adequarem à proibição. Houve, como consequência, um aumento de processos trabalhistas, ações civis públicas e acordos extrajudiciais, envolvendo indenizações a trabalhadores expostos [13].

Mesmo após a histórica decisão de 2017, nova ADI, a de número 6200, da lavra da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), precisou ser ajuizada para questionar a lei estadual de Goiás (Lei nº 20.514/2019), aprovada em manifesta afronta à decisão do STF, permitindo a extração do mineral para fins ‘exclusivos’ de exportação.

Com quatro votos já proferidos pela sua inconstitucionalidade, a tramitação foi suspensa por pedido de vista do Ministro Nunes Marques em 17 de março de 2025, renovado em 19 de junho de 2025 por mais 90 dias.

As divergências entre os votos já proferidos estão na modulação dos efeitos, isto é, no prazo para a decisão tornar-se efetiva. Dois votos propõem a paralisação imediata da mineração (Ministros Rosa Weber e Edson Fachin) e dois votos definem prazos de dois anos (Ministro relator Alexandre de Moraes) e cinco anos (Ministro Gilmar Mendes).

Este último prazo de cinco anos atende integralmente aos interesses e anseios da indústria e do governo de Goiás, que, no meio de todo esse debate e pressões da sociedade civil organizada, aprovou, em 15 de agosto de 2024, mais uma lei claramente inconstitucional, a de número nº 22.932, que prevê que a extração do amianto tenha uma sobrevida de mais cinco anos; isto é, passe a valer apenas em 2029, 12 anos após a icônica decisão do banimento do amianto no Brasil, uma das mais aclamadas mundialmente por se tratar de seu ineditismo: decidida por uma suprema corte constitucional, última instância de nossa hierarquia judicial, e com a mina ainda em pleno funcionamento [13].

Desse modo, em 2025, a Abrea declara ‘Ainda Estamos Aqui’, aguardando a tramitação de idas e vindas dentro do STF [13].

Diferenças Regionais

Os estados de São Paulo, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro foram os pioneiros em legislações de banimento do amianto. Essas legislações foram questionadas, conforme descrito anteriormente, por supostamente invadirem competência federal, o que culminou em disputas judiciais no STF.

O quadro 2 mostra as leis estaduais sobre o banimento do amianto, judicializadas no STF, com exceção da Lei goiana nº 22.932/2024, embora outras tantas leis estaduais e municipais tenham sido aprovadas para assegurar o cumprimento da decisão do STF, sendo que dezenas de novos municípios também legislaram sobre a fiscalização de passivos ambientais e substituição de materiais.

O fato é que, no estado de Goiás, onde está localizada a mina de amianto no Brasil, a única em atividade no País, as duas leis contestadas por manifesta inconstitucionalidade e afronta à decisão da Suprema Corte brasileira são para permitir a continuidade da exploração mineral do amianto, garantindo-lhe o máximo possível de sobrevida.

Um breve levantamento sobre leis estaduais e municipais propostas revela que as regiões Sul e Sudeste concentraram a maior parte das legislações proibitivas, enquanto estados das regiões Centro-Oeste e Norte apresentaram menor número de projetos de leis.

Tais variações refletem o peso das indústrias locais, a organização de movimentos sociais, o engajamento de instituições públicas como o Ministério Público do Trabalho (MPT), que desempenharam um papel relevante nessas proibições, especialmente no estado de Santa Catarina, tal como o posicionamento político das Assembleias Legislativas das mencionada regiões.

O papel da Abrea na luta pelo banimento do amianto no Brasil

A Abrea é uma entidade de extrema relevância na história da saúde pública e da justiça ambiental no Brasil. Fundada em 1995, foi reconhecida como de Utilidade Pública Federal (Portaria nº 2.413/2005), Estadual (Lei nº 11.703/2004 – SP) e Municipal (Lei nº 3.726/2002 – Osasco-SP), consolidando-se como a principal voz dos trabalhadores e familiares afetados pelas DRAs.

Sua atuação foi decisiva para o banimento definitivo do amianto no Brasil, decretado pelo STF em 2017 – um marco histórico, como já foi dito, pois o País foi o único no mundo a ter a proibição estabelecida pelo Poder Judiciário, e não pelos Poderes Executivo ou Legislativo, e em um contexto em que a mineração ainda estava em plenas atividade.

Principais conquistas e ações da Abrea

a) Combate ao Lobby do Amianto e vitórias jurídicas

● Declaração de inconstitucionalidade da lei federal que permitia o ‘uso controlado’ do amianto, desmontando a narrativa do ‘uso seguro’.
● Atuação vigorosa como amicus curiae em ações no STF, que pretendiam a inconstitucionalidade das leis estaduais aprovadas.
● Produção de relatórios e dossiês técnicos que embasaram decisões de parlamentares, procuradores e magistrados.

b) Avanços legislativos e normativos

● Pressão pela aprovação de ‘leis municipais e estaduais’ de banimento desde os anos 2000.
● Participação ativa na aprovação da Resolução º 348/2004 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que classificou os resíduos de amianto como perigosos, exigindo descarte adequado em aterros industriais classe I [14].

c) Vigilância em saúde e registro de vítimas

● Estímulo à promoção e efetivação de sistemas de registros das DRAs como o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e a criação do Datamianto (aguardando-se para breve a implantação no SUS) para mapear DRAs e promover a vigilância dos expostos.
● Parcerias com universidades, Fundacentro e MPT em campanhas de informação e projetos de desamiantagem.

d) Memória e conscientização

● Idealização do Memorial das Vítimas do Amianto, em Osasco, em homenagem aos que perderam a vida devido à exposição à fibra cancerígena.
● Produção de cartilhas, materiais educativos e campanhas digitais nas mídias sociais (como a disponível no site da Abrea) para informar sobre os riscos do amianto e os direitos das vítimas.

e) Apoio jurídico e mobilização social

● Apoio a centenas de ações civis públicas e individuais por danos morais e materiais, pela remoção de materiais em instalações contendo amianto e a recuperação de áreas degradadas pela mineração e indústria de trasnformação.
● Participação ativa em audiências públicas e pressão institucional por reformas normativas.

Legado e continuidade da luta

A Abrea não apenas liderou a luta pelo banimento do amianto como também transformou essa causa em um movimento por justiça socioambiental e saúde pública, garantindo que as vítimas fossem ouvidas.

Sua atuação permanece essencial diante de tentativas de retrocessos legislativos, reforçando a necessidade de ‘vigilância constante’ contra os riscos do amianto.

Resumindo, na área da saúde, impulsionou a criação do Datamianto (sistema de notificação de doenças relacionadas ao amianto) e reforçou a importância dos registros no Sinan para visibilizar a casuística das DRAs no País.

Firmou parcerias com universidades, com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Fundacentro e o MPT para desenvolver campanhas educativas para as trabalhadoras e trabalhadores e seus familiares e projetos de descontaminação e reabilitação de áreas degradadas pela indústria do amianto, especialmente de mineração.

Promoveu ações judiciais coletivas e individuais, auxiliando centenas de trabalhadores e familiares na busca por indenizações por danos morais e materiais.

Organizou audiências públicas e mobilizações para pressionar por mudanças normativas em todas as esferas de governo.

Atuou no campo da comunicação com a sociedade, elaborou materiais educativos, alertando sobre os riscos do amianto, além de ter idealizado o referido Memorial das Vítimas do Amianto em Osasco, um marco simbólico da luta.

Em síntese, a Abrea é um exemplo de resistência, mobilização e conquista, deixando um legado que vai além da proibição – um compromisso com a vida, a memória e a justiça.

Discussão

A trajetória do amianto no Brasil evidencia como a proteção à saúde dos trabalhadores e ao meio ambiente depende de múltiplas instâncias institucionais. O protagonismo do STF foi decisivo para os avanços normativos, mas também revelou a fragilidade de políticas públicas que, por décadas, mantiveram e até promoveram o uso do amianto amplamente reconhecido como perigoso e nocivo à saúde.

O papel de entidades como a Abrea foi fundamental na produção de evidências e mobilização social. Desde sua fundação em 1995, a Abrea tem sido uma força motriz no ativismo pelo banimento do amianto no Brasil. Suas principais ações incluem:

● Apoio a vítimas e familiares: oferecendo suporte jurídico, social e de saúde a trabalhadores e suas famílias afetadas pela exposição ao amianto.
● Produção de conhecimento e denúncia: levantando dados, realizando pesquisas e divulgando informações sobre os riscos do amianto, desmistificando a tese do ‘uso seguro e controlado’.
● Atuação em diversas esferas: participando ativamente de debates legislativos, acompanhando processos judiciais (como a declaração de ‘Ainda Estamos Aqui’ em relação à ADI 6200) e pressionando por políticas públicas robustas de vigilância e reparação.
● Mobilização social e conscientização: organizando campanhas, seminários e eventos para sensibilizar a sociedade e o poder público sobre a gravidade do problema. Os ‘relatórios institucionais e publicações técnicas’ da Abrea, que datam de 2005 a 2023, são um testemunho de sua atuação contínua.

A judicialização do tema funcionou como via alternativa à paralisia do Executivo e do Legislativo federal. As DRAs possuem um tempo de latência longo, principalmente os cânceres e o mesotelioma, que podem levar até mais de 50 anos para se manifestarem após a primeira exposição.

Assim, a persistência de passivos ambientais e um grande número de trabalhadoras e trabalhadores adoecidos são esperados nas próximas décadas.

Tal fato aponta para a necessidade de políticas públicas integradas, tanto na área da saúde como no campo da reparação judicial, bem como a urgente necessidade de ampliação da informação e registros, por meio dos sistemas já existentes do DataSUS, como a correta comunicação de óbitos no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), de adoecimentos no Sinan e no recentemente criado Datamianto, ainda não completamente incorporado no sistema DataSUS, que pretende fornecer instrumentos e transparência para a realização da vigilância de trabalhadores e das populações ambientalmente expostas ao cancerígeno amianto.

O banimento visa eliminar a exposição e, consequentemente, os casos de DRAs. Contudo, permanece o desafio do passivo ambiental, em que milhares de edificações ainda contêm amianto, que necessitam de uma remoção segura (desamiantagem) para a qual são exigidas políticas públicas robustas, além de infraestrutura adequada para o manejo dos resíduos tóxicos.

A Fundacentro, com outras instituições de pesquisa e ensino, como a Fiocruz, vem desenvolvendo protocolos e apresentando propostas para a realização de programas para desamiantagem, a capacitação de mão de obra especializada para remoção segura, incentivos orientados para substituição desses materiais contaminantes e apoio à transição econômica em municípios com minerações, extintas, desativadas ou ainda em atividade [15].

A experiência brasileira com o amianto não é isolada no cenário internacional. Diversos países enfrentaram e continuam a enfrentar desafios semelhantes em sua trajetória jurídica, política e social em relação ao mineral.

Por exemplo, nos Estados Unidos da América (EUA) e no Canadá, o uso do amianto foi amplamente utilizado por décadas e, embora progressivamente restrito, o banimento total no Canadá foi um processo longo.

Nos EUA, o banimento é ainda incompleto e setorializado com revezes marcados pela atual política do governo federal avesso a avanços socioambientais, embora persistam intensas batalhas judiciais e mobilização de milhares de vítimas, como temos assistido no caso das mulheres com câncer contaminadas pelo talco da Johnson & Johnson.

A União Europeia, por outro lado, adotou uma abordagem mais proativa, banindo o amianto em todos os seus Estados-Membros em 2005, após décadas de evidências científicas e pressão social. No entanto, mesmo lá, o desafio do passivo ambiental e da gestão das DRAs persiste.

Em países da América do Sul, como a Argentina, o Chile, o Uruguai e a Colômbia, mais recentemente, também houve processos de banimento, muitas vezes influenciados por decisões políticas, e até mesmo empresariais, e pela pressão de organizações de saúde e ambientais, ecoando a luta pelo banimento do amianto nas Américas como uma questão de saúde pública, embora com pouca mobilização social, tão necessária para a vigilância permanente dos ambientes e da saúde dos expostos.

Essas comparações reforçam a complexidade do problema e a necessidade de políticas públicas estruturais e continuadas para lidar com os impactos de longo prazo da exposição ao amianto, como observado em debates sobre desenvolvimento e sustentabilidade e os limites das soluções locais para um problema de saúde global. A experiência global reitera que, mesmo após o banimento legal, a vigilância em saúde, a reparação e a gestão de passivos são desafios que perduram por gerações.

Conclusões

Esta breve análise da situação da presença do mineral cancerígeno no Brasil oferece um roteiro sobre a produção documental relacionada com o amianto, destacando a complexa articulação entre direito, justiça, mobilização social, ciência e políticas públicas.

Ela revela um avanço progressivo na proteção à saúde, embora desigual entre os estados. A decisão promulgada pelo STF em 2017 foi um passo extremamente importante, mas o enfrentamento dos danos causados pelo uso do amianto ainda exige medidas estruturais de saúde coletiva, justiça ambiental e reparação aos direitos sociais coletivos e individuais. A falta do engajamento nessas ações de prevenção e reparação pelos Poderes Executivo e Legislativo federal tem comprometido e adiado a eficácia das medidas adotadas pelo Judiciário brasileiro.

O País vem evoluindo da permissividade regulatória para um banimento quase total, sustentado por decisões judiciais e legislações estaduais, umas inovadoras e algumas outras ainda recalcitrantes, como as do estado de Goiás. Essa realidade, com leis como a goiana de 2024 que estende a extração por mais cinco anos, aponta para a persistência de interesses econômicos que desafiam o consenso científico e jurídico sobre a nocividade do amianto.

É necessário avançar na gestão do passivo ambiental, nas políticas de saúde pública e nas estratégias de justiça socioeconômica para trabalhadores e comunidades afetadas.

A necessidade de remoção segura do amianto de milhares de edificações (desamiantagem) exige políticas públicas robustas e infraestrutura adequada para o manejo de resíduos tóxicos, como as que a Fundacentro e Fiocruz vêm propondo [15].

Além disso, adicionalmente, persistem desafios significativos na garantia dos direitos individuais dos afetados. A dificuldade nos diagnósticos dentro do SUS, a falta de estrutura na perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para o reconhecimento das doenças e ainda a morosidade judicial em processos indenizatórios são barreiras que se arrastam por anos.

Em algumas Unidades da Federação, os valores indenizatórios são considerados irrisórios, refletindo uma visão que, por vezes, desconsidera o valor da vida do trabalhador em face da atividade produtiva. Esses pontos reforçam a necessidade de fortalecimento dos sistemas de saúde e justiça para assegurar a efetiva reparação dos danos e a valorização da vida como um direito humano irrenunciável.

Albuquerque de Castro,  Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. [email protected]

Fernanda Giannasi, Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea)

Referências

[1] Ministério do Trabalho e Emprego (BR). Norma Regulamentadora NR-15, Anexo 12 – Atividades e operações insalubres [Internet]. Brasília, DF: TEM; 2023 [acesso em 2025 abr 14]. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselhos-e-orgaos-colegiados/comissao-tripartite-partitaria-permanente/arquivos/normas-regulamentadoras/nr-15-anexo-12.pdf/view

[2] Organização Mundial da Saúde. Asbestos [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2024 [acesso em 2025 abr 14]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/asbestos

[3] Castro HA, Giannasi F, Novello C. A luta pelo banimento do amianto nas Américas: uma questão de saúde pública. Ciênc Saúde Coletiva. 2003;8(4):943–955. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232003000400013

[4] Rocha JCS, Wanderley RG. Direito e justiça ambiental: agravos à saúde dos trabalhadores e o amianto no Brasil. Rev Juríd Luso-Brasileira. 2018;4(6):2245–2263.

[5] Ministério do Trabalho e Emprego (BR). Lista Nacional de Agentes Cancerígenos para Humanos – LINACH [Internet]. Portaria Interministerial MPS/MTE/MS nº 9/2014 [acesso em 2025 abr 14]. Disponível em: https://www.normaslegais.com.br/legislacao/anexo-port-mps-mte-ms-9-2014.pdf

[6] Castro HA. Desenvolvimento e sustentabilidade: desafios da Rio + 20. Saúde debate. 2012;36(Esp):98-105.

[7] Martin-Chenut K, Saldanha J. O caso do amianto: os limites das soluções locais para um problema de saúde global. Lua Nova. 2016;98:141-70. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-6445141-170/98

[8] Presidência da República (BR). Lei nº 9.055, de 1º de junho de 1995. Dispõe sobre a extração, industrialização, utilização, comercialização e transporte do amianto. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 1995 jun 2; Seção I:23371.

[9] Ministério da Saúde (BR), Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.851/GM/MS, de 9 de agosto de 2006. Aprova os procedimentos para envio ao SUS da listagem de trabalhadores expostos e ex-expostos ao amianto. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2006 ago 10 [acesso em 2025 abr 14]; Seção I. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt1851_09_08_2006.html

[10] Presidência da República (BR). Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 1991 jul 25 [acesso em 2025 abr 14]; Seção I:14809. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm

[11] Supremo Tribunal Federal (BR). STF proíbe extração e venda de amianto crisotila. Portal STF [Internet]. 2017 [atualizado em 2023 jun 19; acesso em 2025 abr 14]. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=509089&ori=1

[12] Borges H, Fernandes V. O uso do amianto no Brasil: o embate entre as duas racionalidades no Supremo Tribunal Federal. Ambient Soc. 2014;17(2):175-94. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-753X2014000200012

[13] Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto. Relatórios institucionais e publicações técnicas: 2005–2023 [Internet]. Osasco: Abrea; [ano desconhecido] [acesso em 2025 abr 14]. Disponível em: http://www.abrea.org.br

[14] Ministério do Meio Ambiente; Conselho Nacional do Meio Ambiente. Resolução nº 348, de 16 de agosto de 2024. Altera a Resolução CONAMA no 307, de 5 de julho de 2002, incluindo o amianto na classe de resíduos perigosos. Diário Oficial da União [Internet], Brasília, DF. 2004 ago 17 [acesso em 2025 abr 14]; Edição 158; Seção I:70. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=17/08/2004&jornal=1&pagina=70&totalArquivos=80

[15] Fundacentro (BR). Guia de boas práticas para a desamiantagem [Internet]. São Paulo: Fundacentro; 2023 [acesso em 2025 abr 14]. Disponível em: https://www.gov.br/fundacentro/pt-br/centrais-de-conteudo/faq-desamiantagem/boas-praticas-em-desamiantagem

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 24/08/2025