Um dos elementos mais fundamentais da condição humana é a vertigem do presente. Todas as gerações parecem se convencer, de uma maneira ou de outra, que o tempo em que vivem é crítico, único na história da experiência humana. Basta um olhar mais geral sobre essa história, contudo, para constatarmos que tal impressão é enganosa: as épocas não são todas tão críticas, a história tem grandes continuidades e verdadeiras calmarias.
Digo isso quase como um disclaimer, pois é difícil não concluir que a política brasileira passa por um período bastante crítico e prenhe de novidades, em sua maioria bastante preocupantes. Refiro-me, primeiramente, à prolongada crise política que atravessamos, que teve seu início nos protestos de junho de 2013.
Há quem duvide dessa datação, mas a queda repentina de 40% na aprovação da então presidente Dilma Rousseff é um evento muito raro na história, e esse não foi o único sinal dado por junho de 2013. A onda de rejeição à representação política institucional que lá se ergueu, e foi terrivelmente amplificada pela Operação Lava Jato, ainda continua a varrer os mares da política brasileira atual, ainda que um pouco atenuada. Na verdade, é essa a grande crise da qual ainda não nos livramos: a baixa legitimidade da representação política perante os cidadãos/eleitores.
Uso aqui o privilégio de um cientista político que tem se dedicado, nos últimos anos, a analisar uma pletora de dados quantitativos e qualitativos, produzidos por pesquisas nas quais sou investigador ou de terceiros. Uma coisa bastante clara emerge desses dados: o sentimento de rejeição à política é ainda muito forte. Ele desempenhará um papel nas eleições municipais que se aproximam, mas não estará sozinho.
Há cidades com vários candidatos que se apresentam como legítimos representantes do bolsonarismo
É fato que sentimentos não governam cidades ou países. Nos regimes democráticos, são os políticos eleitos que o fazem. Nossa história recente mostra que a rejeição à política pode ser um formidável cabo eleitoral. Foi ela, no auge de seu esplendor lavajatista, que elegeu Jair Bolsonaro, o outsider, em 2018. Digo isso baseado em dados de pesquisa que mostram que os eleitores do capitão reformado naquele pleito possuíam, em sua maioria, um parco conhecimento prévio de sua figura, mas tinham informação suficiente para identificar nele o arauto da antipolítica. Ademais, com um tempo no horário eleitoral gratuito exíguo e baixíssimo orçamento oficial de campanha, o candidato teve poucas condições de divulgar pontos substantivos de sua plataforma, que em si já era bastante desidratada.
No entanto, a partir da vitória eleitoral e ao longo de sua Presidência, Bolsonaro teve tempo para se posicionar como o campeão dos valores conservadores, da liberação das armas, da militarização da sociedade, do evangelismo inflamado e sectário e de tantas outras mazelas morais.
Se a antipolítica e o antipetismo foram, em 2018, o principal cabo eleitoral de Bolsonaro, a agenda ultraconservadora tornou-se a marca principal do bolsonarismo, entendido aqui como um conjunto de cidadãos que preferem o capitão, com diferentes intensidades e por diferentes motivos. O grande feito do ex-militar em seu governo foi a sedimentação da representação de um grande contingente de pessoas que de alguma maneira se identificou com itens da sua pauta.
As pesquisas mostram claramente que não há “um” tipo de bolsonarista, mas uma combinação de variados perfis. Na última análise que fiz, com dados de 2023, agrupando eleitores de Bolsonaro no segundo turno, encontrei três grandes grupos: um religioso conservador nos valores e desenvolvimentista na economia, outro progressista nos valores e desenvolvimentista na economia, e um terceiro progressista nos valores em geral, mas conservador na questão da segurança (lei e ordem) e desenvolvimentista na economia. Não é surpresa para quem é do ramo, mais uma vez, constatar que o povo brasileiro não é neoliberal privatista, nem os bolsonaristas o são, em sua maioria.
A figura carismática de Bolsonaro é central no bolsonarismo. Acontece que ele não é candidato nas eleições municipais que se aproximam. Na verdade, nem sequer pode ser candidato às próximas eleições presidenciais. Ademais, baseado no padrão de seu comportamento nas eleições municipais passadas, também não é muito afeito a se engajar em campanhas dos outros. Por outro lado, o bolsonarismo teve um enorme sucesso eleitoral em 2018, quando ainda não estava consolidado, e em 2022. Esse baú do tesouro repleto de eleitores é uma enorme tentação para políticos da extrema-direita e da direita mais tradicional, que implodiu no pleito de 2018 no nível nacional, mas ainda faz uma guerra de posições nos estados e no interior do País.
Não podemos nos esquecer de que, em eleições municipais, questões locais, inclusive de políticas públicas, costumam ter relevância, ao passo que a influência de fatores macro – como a preferência por Bolsonaro ou Lula – é fator variável, muito dependente do contexto de cada município. Como dizia um velho cientista político, “no interior (do Brasil) partido político não existe”, dando a entender que a lógica partidária que move a política de Brasília geralmente não se replica nos municípios.
Há, portanto, três tipos básicos de candidatos nas eleições que se aproximam: o bolsonarista convicto, geralmente do PL, Republicanos, PP, PSC, com claras ligações históricas com a extrema-direita; o político local de centro-direita, geralmente pertencente a algum partido do Centrão, mas com forte base regional; e o político filiado a partidos de esquerda e centro-esquerda da base do governo Lula.
Cada tipo de candidato joga um jogo diferente. O bolsonarista convicto se esforçará ao máximo para colar sua figura à de Bolsonaro, o que em geral vai ter de ser feito por procuração, uma vez que o ex-militar não terá tempo ou disposição para fazê-lo, na maioria dos casos. Esse candidato bolsonarista tem o conforto de contar com o apoio da base hard de eleitores, mas isso pode não ser suficiente para consolidar uma maioria, pois, se a associação com Bolsonaro dá votos, ela também tira.
Se a associação com Bolsonaro dá muitos votos, ela também tira
O centro-direitista deveria fiar-se em suas redes locais para ser competitivo, mas muitos tentam associar-se ao bolsonarismo, em busca do cabedal de votos que isso supostamente traria. Certamente, serão menos críveis nessa tentativa perante o eleitorado.
O candidato de centro-esquerda deverá aplicar-se na construção de apoio local. Ainda que o apoio de Lula possa ter algum efeito em alguns contextos regionais, no geral, como nossas pesquisas mostram, o eleitor mais à esquerda prefere deixar essa associação com a política nacional como última instância no processo de decisão do voto. Ademais, esse candidato terá novamente de enfrentar as acusações lavajatistas de corrupção, que a direita e a extrema-direita usam como moeda eleitoral há mais de uma década.
Por mais que a situação possa parecer difícil para a esquerda, a corrida ao tesouro eleitoral do bolsonarismo divide a direita e mesmo a extrema-direita. Há municípios com vários candidatos bolsonaristas concorrendo pela posição de legítimo representante. Têm mais sorte aqueles candidatos de esquerda em municípios onde não há segundo turno, pois a divisão da direita abre uma oportunidade de vitória. Mas isso é matéria para outro artigo. •
Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital, em 28 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Espólio em disputa’