“Sou um velho que está muito perto de empreender a viagem de onde não se volta, mas sou feliz porque tenho vocês, porque, quando meus braços se forem, haverá milhares de braços substituindo a luta.” Foi durante um comício, em outubro de 2024, que José Mujica se despediu dos militantes que o acompanharam ao longo de mais de quatro décadas de vida pública. Àquela altura, o ex-presidente do Uruguai – ícone da esquerda latino-americana – já enfrentava o diagnóstico de um câncer agressivo no esôfago, que o afastava da linha de frente da vitoriosa campanha de Yamandú Orsi, seu sucessor natural na liderança da progressista Frente Ampla.

Em janeiro, Mujica revelou que passara a receber apenas cuidados paliativos, sem expectativa de reversão do quadro clínico. “O câncer no esôfago está colonizando o fígado. Não há nada que eu faça que consiga deter isso. Por quê? Porque sou um idoso e tenho duas doenças crônicas. Meu corpo não aguenta”, declarou ao jornal uruguaio Búsqueda, ao mesmo tempo que pedia para não ser mais procurado pela imprensa. “Sinceramente, estou morrendo e o guerreiro tem direito ao seu descanso.” Quatro meses se passaram até que o ex-guerrilheiro tupamaro pudesse, enfim, repousar, aos 89 anos. “Sentiremos muita falta de você, velho querido. Obrigado por tudo que nos deu e pelo profundo amor por seu povo”, escreveu Orsi, ­atual presidente do Uruguai, ao anunciar a morte de Mujica na terça-feira 13.

Oriundo de uma família de pequenos produtores agrícolas, Pepe, como era conhecido, jamais deixou de cultivar um estilo de vida simples, mesmo após chegar ao poder. Recusou a luxuosa residência oficial da Presidência e continuou morando com a esposa, a ex-vice-presidente e ex-senadora Lucía Topolansky, em uma modesta casa de paredes descascadas e telhado de zinco na pequena chácara do casal, localizada nos arredores de Montevidéu. Mujica só abriu as portas do palacete Suárez y Reyes para oferecer abrigo a pessoas em situação de rua durante os rigorosos invernos uruguaios.

Despedida. “Quando meus braços se forem, haverá milhares de braços substituindo a luta”, discursou em outubro – Imagem: Pablo Porcíuncula/AFP

O então presidente deslocava-se até o trabalho a bordo de seu inseparável Volkswagen 1987, comprado de segunda mão, em 2005, quando assumiu o Ministério da Agricultura no governo de ­Tabaré Vázquez. Chegou a receber propostas tentadoras para se desfazer do carro, como a oferta de 1 milhão de dólares feita por um xeque árabe em 2014, durante uma reunião de cúpula do G77 + China em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. À época, Mujica cogitou aceitar a quantia, com o objetivo de destiná-la a um programa social, mas o negócio não se concretizou – e o Fusquinha azul-celeste transformou-se em um símbolo nacional do Uruguai. O chefe de Estado, por sinal, doava quase 70% do seu salário ao seu partido e a um fundo para construção de moradias populares. Relutava em vestir paletós e abolira completamente as gravatas, que considerava inadequadas para um país tropical e símbolo do “colonialismo cultural europeu”.

Sua simplicidade não tardou a atrair a atenção da mídia internacional, que passou a referir-se a Mujica como “o presidente mais pobre do mundo”. Sempre que podia, fazia questão de refutar a alcunha. Tinha o suficiente para viver com dignidade, apenas não queria tornar-se refém do consumismo. “Pobres são os que querem sempre mais, que não se satisfazem com nada”, explicou à rede britânica BBC. “Esses são pobres porque entram em uma corrida infinita. E não terão tempo suficiente na vida.” Em outras entrevistas, acrescentou que os anos passados no cárcere, durante a ditadura, ensinaram-lhe a reconhecer com clareza o que é, de fato, essencial para se viver bem.

No governo Mujica, o salário mínimo dobrou de valor e a pobreza foi reduzida à metade

A trajetória política de Mujica teve início ainda na juventude, quando se aproximou do Partido Nacional, também conhecido como Partido Blanco, tradicional sigla ligada aos interesses dos produtores rurais. Embora não fosse de esquerda, a legenda abrigava correntes progressistas que atraíram o jovem militante. Com o tempo, Mujica mergulhou em leituras marxistas, que moldaram sua visão de mundo. Na década de 1960, influenciado por Lênin e pelos ideais da Revolução Cubana, uniu-se ao Movimento de Libertação Nacional, os Tupamaros.

Foi nesse período que passou a participar de ações armadas, incluindo assaltos a bancos e empresas, com o objetivo de financiar a guerrilha – e também redistribuir parte dos recursos “expropriados” à população mais pobre. Um dos episódios mais ousados da organização ficou conhecido como a Tomada de Pando. Em 8 de outubro de 1969, cerca de 50 guerrilheiros ocuparam simultaneamente a delegacia de polícia, o corpo de bombeiros, a central telefônica e os bancos da cidade de Pando, a cerca de 30 quilômetros de Montevidéu.

Herança. A legalização da maconha e o casamento homoafetivo são algumas das contribuições deixadas pelo ex-presidente – Imagem: Eitan Abramovich/AFP e Miguel Rojo/AFP

Durante os anos de clandestinidade, foi detido diversas vezes. Em uma delas, tentou resistir à prisão e foi atingido por seis tiros. Quase morreu na calçada, à espera de socorro. Escapou do cárcere em duas ocasiões, incluindo a cinematográfica fuga de Punta Carretas, em 1971, quando mais de uma centena de presos – em sua maioria tupamaros – escavaram túneis para sair do presídio. Ao ser recapturado, em 1972, não teve a mesma sorte: nos quase 13 anos que permaneceu preso, passou longos períodos em confinamento solitário, submetido a condições desumanas e bárbaras torturas.

Na prática, Mujica foi mantido como refém da ditadura uruguaia. Jamais foi julgado ou formalmente acusado de qualquer crime – os militares ameaçavam executar os líderes tupamaros, caso a organização retomasse a luta armada. Perdeu dentes em sessões de espancamento e, para sobreviver aos prolongados períodos de privação, precisou beber a própria urina e comer papel higiê­nico. O suplício só terminou em 1985, com a redemocratização do país. Esse período tenebroso foi retratado no filme Uma Noite de 12 Anos (2018), dirigido por Álvaro Brechner, que comoveu plateias em vários países. Ao deixar o cárcere, aos 50 anos, Mujica carregava apenas um improvisado vaso de calêndulas, flores cultivadas em um penico – o mesmo que foi obrigado a usar por anos, antes de ter acesso a um banheiro.

Mujica voltou a cultivar flores, legumes e hortaliças para sobreviver – ofício que aprendera ainda na infância, ajudando no sustento da família, sobretudo após a morte do pai. O trabalho no campo não o afastou da política. Dentro da ­Frente ­Ampla, ajudou a fundar o Movimento de Participação Popular (MPP), que hoje reú­ne o maior número de parlamentares da aliança. Pelo partido, elegeu-se deputado e senador, antes de ser nomeado ministro da Agricultura por Tabaré ­Vázquez, primeiro presidente vindo de uma coligação de centro-esquerda, em 2005. Na eleição seguinte, Mujica assumiu a liderança da Frente Ampla e foi eleito para comandar o Uruguai. Derrotou o ex-presidente Luis Alberto Lacalle, que governara o país entre 1990 e 1995, com 52,8% dos votos no segundo turno.

Líder tupamaro. Mujica foi mantido como refém da ditadura por quase 13 anos – Imagem: Câmara Três/AFP

Mesmo com a desaceleração da economia no fim de seu mandato, o Uruguai cresceu a uma média superior a 4% ao ano durante o governo Mujica. O então presidente aproveitou o boom nas ­commodities agrícolas para promover justiça social – e obteve êxito. O valor nominal do salário mínimo mais que dobrou, passando de 4.800 pesos, em 2010, para 10 mil, em 2015, segundo dados do Ministerio de Trabajo y Segurida­d ­Social. Com robustos investimentos em programas sociais e políticas de transferência de renda, a taxa de pobreza caiu de 18,5% para 9,7% no mesmo período, atesta o Banco Mundial. A pobreza extrema foi praticamente erradicada.

O governo não se notabilizou somente pelas conquistas sociais. Eleito aos 75 anos de idade, Mujica surpreendeu a juventude ao legalizar a Cannabis e regular o seu mercado – agora, o cidadão uruguaio pode adquirir até 10 gramas por semana em farmácias, mediante um cadastro prévio. “Não ache que estou defendendo a maconha. Eu declaro que o amor é o único vício saudável na face da Terra. Todos os outros são uma praga”, afirmou o então presidente. “A vantagem (da legalização) é que podemos identificar quem está consumindo. E se identificamos os consumidores, podemos ajudá-los. Se criminalizamos e os mantemos no submundo, estamos encaminhando os usuários aos traficantes e lavando nossas mãos da responsabilidade.”

Durante seu mandato, o Uruguai destacou-se ainda por implementar uma das legislações mais avançadas do mundo em relação aos direitos civis. Com o apoio do governo, foi aprovada uma lei que descriminalizou o aborto até a 12ª semana de gestação, assegurando a todas as mulheres acesso a procedimentos seguros nos hospitais públicos. No ano seguinte, veio a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Embora não se considerasse um ativista dessas pautas, ­Mujica as abraçou por entender que o Estado deve respeitar a autonomia e a dignidade de todos: “O casamento gay é mais velho que o mundo. Dizem que é moderno, mas é mais antigo que todos nós. É uma realidade objetiva. E não legalizar seria torturar pessoas desnecessariamente”.

Mujica é prova de que “a luta política e a doçura podem caminhar juntas”, escreveu Lula

Após deixar a Presidência, em 2015, Mujica reassumiu sua cadeira no Senado, onde permaneceu até 2020. Mesmo fora do Executivo, manteve-se como uma das vozes mais influentes do país. No plano internacional, ganhou projeção como defensor de um novo modelo de desenvolvimento, menos dependente do consumo e mais comprometido com a sustentabilidade.

O avanço da extrema-direita o preocupava há muito tempo, como disse a ­CartaCapital em 2017. Segundo ele, a globalização e a crescente concentração de riqueza nas mãos de poucos despertaram o ressentimento das classes médias nos países centrais, que se sentiam estagnadas e passaram a reagir politicamente – ainda que de forma ingênua. “O operário de Detroit pensa que fica sem trabalho por causa do operário mexicano. O pequeno empresário nos EUA costuma atribuir a culpa da crise aos produtos que vêm da China. Sempre resta o discurso nacionalista de viés conservador.”

Lula recebeu a notícia da morte do amigo durante a viagem oficial à China. “Amanheci em Pequim com a triste notícia de que Pepe Mujica partiu hoje, nos deixando cheios de tristeza, mas também de muitos aprendizados. Sua vida foi um exemplo de que a luta política e a doçura podem andar juntas. E de que a coragem e a força podem vir acompanhadas da humildade e do desapego”, disse o presidente, que havia recebido uma visita de ­Mujica na prisão em 2018, quando ainda estava enredado na trama da Lava Jato.

Comoção. Milhares saíram às ruas de Montevidéu para acompanhar o cortejo – Imagem: Pablo Porcíuncula/AFP

Além de Lula, outros chefes de Estado progressistas lamentaram a morte de Mujica. Primeiro presidente de ­esquerda da história da Colômbia, Gustavo Petro saudou o uruguaio como “o grande revolucionário” do continente e exemplo a ser seguido “por seu ideal de integração da América Latina e do Caribe”. A mexicana Claudia Sheinbaum afirmou “lamentar profundamente o falecimento do querido Pepe” e também destacou seu exemplo para o mundo “pela simplicidade e pela capacidade de reflexão”. Já o presidente do Chile, Gabriel Boric, que esteve com Mujica em fevereiro, divulgou uma carta de despedida: “Caro Pepe, imagino que você vá embora preocupado com a salada amarga que existe no mundo hoje. Mas, se você nos deixou alguma coisa, foi a esperança insaciável de que é possível fazer as coisas melhor”. A morte do ex-presidente do Uruguai também repercutiu entre líderes europeus. Segundo o premier espanhol Pedro Sánchez, M­ujica “acreditou, fez campanha e viveu por um mundo melhor”.

Milhares de pessoas acompanharam, emocionadas, o cortejo que percorreu as ruas de Montevidéu na quarta-feira 14. Como desejava, o corpo de José ­Mujica será cremado, e as cinzas espalhadas na modesta chácara onde viveu por décadas ao lado de Lucía e de sua inseparável cachorrinha Manuela, de três patas, enterrada ali após a morte. “Quero descansar perto dela”, dizia o ex-presidente – aquele que, antes de partir, multiplicou seus braços por toda a América Latina. •


*Colaborou Maurício Thuswohl.

Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Hasta siempre, Pepe’

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Last Update: 15/05/2025