Por Gustavo Guerreiro*

Há quem ainda enxergue poesia em taxas alfandegárias. Foi a crença caduca, mas barulhenta de que o protecionismo pode acalmar tempestades geopolíticas que levou o ex-presidente norte-americano Donald Trump, ressuscitado pelo ciclo eleitoral de 2024 e fiel à própria caricatura, a escrever seu recado ao Palácio do Planalto.

Cinquenta por cento sobre carnes, café, sucos e derivados de soja: um latifúndio tarifário que, segundo números do Ministério da Agricultura, encarece em R$ 21 bilhões/ano o bilhete de entrada do Brasil no mercado estadunidense. Nada mau como carta-bomba diplomática!

O roteiro, contudo, não foi composto em Brasília, mas nos porões doentios da chamada “guerra cultural”.

Durante meses, parlamentares e influenciadores digitais do chamado “bolsonarismo 2.0” desfilaram nos corredores do Capitólio oferecendo gravatas verde-amarelas e discursos inflamados contra o Supremo Tribunal Federal.

Em janeiro, quando a maioria democrata exigiu voto simbólico de repúdio aos ataques de 8/1, dois congressistas republicanos brandiram um dossiê recheado de tuítes empacotados pela milícia digital global que apresentava o STF como vilão censor.

Trump, jamais afeito a sutilezas, traduziu o clamor midiático em sanção aduaneira. A mensagem é transparente: se o Brasil não garante “liberdade de expressão” para influenciadores que propagam a chaga terraplanista da vez, que pague em dólares aquilo que nega em likes.

Do outro lado do guichê, víamos ontem presidentes de federações industriais com os olhos rútilos de incredulidade.

Robson Braga de Andrade, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), descreveu a medida como “asfixia deliberada de competitividade”.

José Augusto de Castro, da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), foi menos eufemístico: “tarifa para país inimigo”.

É uma ironia de calibre notável: a direita que jurava defender o produtor de soja do “comunismo” – apontem aí todas as aspas – entrega-o às labaredas do protonacionalismo econômico ianque.

Permita-me um parêntese sociológico. Desde Max Weber sabemos que a racionalidade substantiva difere, e muito, da racionalidade instrumental.

O fazendeiro de Rondonópolis calcula margens; o influenciador que vocifera contra Alexandre de Moraes calcula “engajamento”. Quando o segundo convence o primeiro a trocar o lucro por curtidas, temos o curto-circuito perfeito: ideologia semeada em solo fértil de ressentimento, colhendo embargo comercial logo após a floração eleitoral nos EUA.

Há uma ironia cruel, quase literária, em tudo isso. Para supostamente defender a “liberdade” de uma plataforma americana (o X, antigo Twitter), o governo dos EUA pune o trabalhador brasileiro.

A guerra cultural, essa abstração importada que consome as energias da extrema-direita, revela sua face mais perversa: ela sabota os interesses materiais e concretos do Brasil.

Enquanto se travava uma batalha quixotesca contra moinhos de vento imaginários — o “comunismo”, a “ideologia de gênero”, o “globalismo” —, a economia real, que gera impostos, salários e divisas, era deixada à própria sorte, vulnerável a qualquer retaliação que viesse de nossos “aliados” ideológicos.

Essa dissociação entre o discurso e a realidade é, talvez, o legado mais tóxico do período recente.

A extrema-direita se habituou a uma política que opera no plano simbólico, que se alimenta de pânico moral e teorias conspiratórias, mas que se mostra absolutamente inepta para lidar com os desafios pragmáticos da governança.

A diplomacia, que sob a égide do Barão do Rio Branco se consolidou como uma ferramenta de defesa intransigente dos interesses nacionais, independentemente de simpatias ideológicas, foi substituída no governo Bolsonaro por uma subserviência constrangedora e por um alinhamento automático que, como vemos agora, nos cobra um preço exorbitante.

Bater continência para a bandeira alheia não gerou contratos, não abriu mercados, nem garantiu tratamento preferencial. Pelo contrário: expõe nossa fragilidade e convida ao desprezo. O pedido de “respeito” de Trump ao ex-presidente golpista e futuro presidiário, é lido como “deixem meu fantoche em paz”.

A questão transcende a análise puramente econômica, revelando-se um movimento de forte pressão política. O agronegócio, pilar fundamental da economia nacional, vê seu poder de inserção internacional ser minado de forma drástica. Produtos que são verdadeiros embaixadores comerciais do Brasil, cuja aceitação em mercados externos é fruto de décadas de investimento em qualidade e logística, perdem subitamente sua viabilidade. A medida ignora a competitividade natural desses setores, impondo uma barreira artificial que pune a eficiência e fragiliza ainda mais os lucros do empresariado.

Na indústria de transformação, o prejuízo é igualmente simbólico e estratégico. Itens de maior valor agregado, que conseguiram conquistar nichos de consumo sofisticados e fiéis no exterior, são agora postos em xeque.

A decisão de sobretaxá-los não apenas afeta balanças comerciais, mas destrói o que especialistas em comércio exterior chamam de confiança e previsibilidade, que são a base para qualquer plano de expansão.

Como resultado imediato, o ímpeto de investimento é congelado. Projetos de crescimento e de geração de novas vagas são abortados, não por falta de demanda ou capacidade, mas pela incerteza política.

A consequência direta é a estagnação, demonstrando como uma decisão diplomática externa pode paralisar a engrenagem da economia real e impactar diretamente a vida dos trabalhadores no Brasil. E São Paulo, estado mais industrializado do país, é quem terá os maiores prejuízos. Justamente o estado cujo governador tem se empenhado na campanha “Make America Great Again” efusivamente.

E onde está o governo federal? Lula, pragmaticamente, responde com a Lei de Reciprocidade e com uma nota dura, reafirmando a soberania nacional e a legitimidades das instituições brasileiras, mas quem dita hoje a política comercial republicana não ocupa gabinete na Casa Branca, e sim podcasts da alt-right.

No Congresso brasileiro, Alcolumbre e Motta silenciam covardemente, enquanto a bancada da bala, do boi e da bíblia esbraveja, repercutindo a falsa narrativa de que o culpado é Lula.

Reconheçamos, contudo, que a tragédia não caiu do céu como granizo em Teresina. Desde 2019, especialistas alertavam que a aposta automática na vitória permanente de Trump expunha o Brasil a retaliações caso o vento ideológico mudasse.

A pergunta central – quem paga a conta? – exige resposta menos abstrata do que gostariam os marqueteiros.

Paga o trabalhador da linha de corte em Dourados, cuja hora extra evapora no mesmo instante em que o importador do Missouri opta por carne australiana.

Pagam pequenas torrefadoras de Minas que, pela primeira vez desde 2008, vinham exportando lotes especiais a cafeterias nova-iorquinas e que verão seus pacotes premium atolados, enquanto a Colômbia ri de canto de boca.

Paga, enfim, o contribuinte, já penalizado pelas decisões anti-povo do Congresso Nacional, pois a arrecadação federal herdará a queda nas exportações como quem herda dívidas de parente distante: sem direito a luto, mas com juros.

Chegamos, pois, à encruzilhada prescritiva. A proposta de uma “união nacional de emergência” entre governo, oposição democrática e setor produtivo não é mero capricho retórico.

Na mesa de Genebra – leia-se, OMC – qualquer recurso contra medida unilateral exige prova de dano sistêmico e, sobretudo, demonstração de que o país afetado fala com uma só voz. Ao contrário do que imagina certo deputado que confunde live com lei, nenhum painel de solução de controvérsias leva a sério litigante que briga consigo mesmo em praça pública.

Tal união demandaria, antes de tudo, cingir fileiras contra a facção que aplaude a sanção estrangeira.

Trata-se de recusar o aplauso à própria derrota, um masoquismo que, convenhamos, nem Freud explica.

A diplomacia deveria combinar a pressão política, forjando coalizão com México, Canadá e, por que não, a União Europeia, igualmente alarmados com a volubilidade trumpista.

Haveria, ainda, o front doméstico. O Planalto pode, por decreto, acionar linhas especiais de crédito via BNDES e Finep para amortecer o impacto imediato nos setores afetados. Mas seria paliativo se o campo político continuar esgarçando-se a cada trending topic.

É vital que o Congresso reaprenda a arte da moderação institucional, não por altruísmo platônico, e sim para proteger a própria base eleitoral. Afinal, até o eleitor mais inflamado percebe quando o preço da laranja dobra não porque “o comunismo chegou”, mas porque um tuíte atravessou o Atlântico e virou tarifa.

Permitam-me uma digressão final, na chave quase literária que o ofício de articulista permite.

Antônio Gramsci já nos alertava que toda hegemonia cultural carrega em seu bojo a responsabilidade histórica pelos consensos que forja. Ao transplante tropical do século 21, acrescento: a disseminação irresponsável de teorias conspiratórias nas redes não é ação inocente, mas uma produção ideológica que materializa impactos reais.

Nesta quadra, cabe-nos decidir se queremos ser protagonistas de guerra cultural importada ou país soberano que defende interesses concretos. A fatura da desordem chegou com carimbo de Trump e vencimento imediato.

Se o povo achar cara a conta, sugiro olhar o extrato, que traz, em letras miúdas, o nome de quem assinou o pedido: Jair Messias Bolsonaro.

*Gustavo Guerreiro, doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 10/07/2025