Por Gustavo Guerreiro*

O ritual se repete todo ano. Entre janeiro e junho, centenas de milhares de jovens brasileiros se dirigem às juntas militares ou, mais recentemente, aos computadores, para cumprir o alistamento obrigatório.

Segundo a Agência Brasil, o prazo para 2025 se encerra no próximo dia 30, mobilizando todos os rapazes nascidos em 2007 e, pela primeira vez, abrindo vagas voluntárias para mulheres.

Mas aqui vai uma provocação que deveria repercutir pelos gabinetes e Comissões do Congresso Nacional (se é que alguém lá ainda se importa com debates substantivos): para que diabos serve, em pleno século XXI, manter um sistema de conscrição massiva que mais parece saído de um manual napoleônico? E quanto custa ao país sustentar essa máquina anacrônica?

Conscrição obrigatória, também conhecida como serviço militar obrigatório ou recrutamento, é a prática em que o alistamento em serviço militar ou serviço nacional é imposto por lei.

Comecemos pelo óbvio, que ninguém quer encarar: o serviço militar obrigatório brasileiro é um resquício do século XX que sobrevive por pura inércia institucional.

A experiência internacional mostra que é possível. Portugal, nosso parente lusitano, fez a transição há duas décadas. A Alemanha, potência militar europeia, aboliu a conscrição em 2011. Até a França, berço da “nação em armas”, abandonou o modelo em 2001.

A resposta oficial é sempre a mesma ladainha sobre “formação cívica” e “defesa da pátria”.

Mas sejamos honestos: que defesa é essa? Contra quem? Os paraguaios planejam uma revanche pela Guerra da Tríplice Aliança? Os uruguaios preparam uma invasão para recuperar a Cisplatina? Ou será que tememos que a Argentina, em meio a sua eterna crise econômica, resolva nos dominar e instituir Maradona como o melhor jogador da história?

A verdade inconveniente, segundo dados do próprio governo, é que o Ministério da Defesa gasta absurdos 78% de seu orçamento com pessoal.

Para 2025, a proposta é de R$ 133,6 bilhões de orçamento total, com a tendência de que cerca de 78% desse valor seja destinado a pessoal, o que pode chegar a aproximadamente R$ 104 bilhões, caso a proporção se mantenha.

E o mais revelador: apenas R$ 38,2 bilhões vão para pessoal da ativa. A maior parte destina-se à reserva (inativos) e pensionistas.

A propósito, ministro Múcio, quanto o governo gasta anualmente só com a conscrição compulsória desses jovens, considerando treinamento, alojamento e manutenção? Esse custo é auditado e divulgado à sociedade?

Façamos as contas que o establishment militar prefere esconder. Segundo análise da CNN Brasil, o Brasil gasta proporcionalmente três vezes mais com pessoal militar que os Estados Unidos (78% contra 22% do orçamento de defesa), conforme dados da Peter G. Peterson Foundation – instituição que acompanha as contas públicas estadunidenses. E não é porque pagamos melhor nossos soldados, muito pelo contrário.

O problema é estrutural: mantemos um contingente gigantesco de jovens mal treinados, mal equipados e desmotivados, que passam um ano aprendendo a marchar, limpar banheiros, pintar meio-fio e cortar grama. Enquanto isso, países europeus que aboliram a conscrição investem em forças menores, profissionais e tecnologicamente avançadas.

O custo de oportunidade é brutal. Cada jovem arrancado de seus estudos ou trabalho representa não apenas um ano perdido em sua formação, mas um dreno para a economia. São centenas de milhares de pessoas em idade produtiva ocupadas em atividades que pouco ou nada agregam à defesa nacional real.

É como se mantivéssemos uma fábrica de carroças em plena era dos carros elétricos.

Ah, mas o serviço militar “forma o caráter”, dirão os nostálgicos. “Transforma moleques em homens”, bradarão os saudosistas de plantão. Se o objetivo é educação cívica e formação de caráter, por que não investimos esses bilhões em escolas públicas de qualidade? Por que não criamos programas de serviço civil que realmente agreguem valor à sociedade?

A falácia é evidente: usamos as Forças Armadas como um arremedo de política social, um band-aid para as falhas monumentais de nosso sistema educacional.

É o Estado admitindo, tacitamente, que falhou em sua função básica de educar e agora precisa do quartel para fazer o que a escola não fez.

A solução é simples, embora politicamente inconveniente. Precisamos de Forças Armadas profissionais, voluntárias, bem treinadas e equipadas: menores em tamanho, mas superiores em qualidade. Esse modelo já existe, é eficaz e foi adotado pela maioria das democracias avançadas.

Imagine o impacto de realocar os bilhões gastos hoje com recrutas desmotivados para prioridades reais, como tecnologia de defesa cibernética (o verdadeiro campo de batalha do século XXI), sistemas modernos de vigilância de fronteiras, treinamento especializado para operações na Amazônia ou salários dignos para militares de carreira. Imagine uma maior integração entre o setor de Defesa, o complexo industrial e a formação em ciência e tecnologia.

Mas não: insistimos na farsa. O jovem se alista, torce para ser dispensado e, se tiver o azar de ser incorporado, perde um ano em tarefas que nada acrescentam à defesa nacional moderna. É um esbanjamento absurdo de talento, tempo e dinheiro público.

Que tal uma proposta para nossos parlamentares? Criem uma Comissão Especial para estudar a transição do serviço militar obrigatório para um modelo 100% voluntário e profissional.

Dois anos seriam suficientes para entregar um plano realista: redução progressiva do número de recrutas, expansão gradual de carreiras militares qualificadas e um estudo aprofundado sobre os impactos.

Não pode faltar também uma análise comparativa com países que já fizeram essa mudança, projeções de custos, o efeito no mercado de trabalho e até opções de serviço civil para jovens que queiram contribuir sem pegar em armas.

Afinal, não é falta de exemplos internacionais nem de dados. É apenas falta de vontade política mesmo.

Defender o país não é obrigar jovens a desperdiçar um ano de suas vidas em quartéis obsoletos. Patriotismo de verdade seria ter a coragem de modernizar nossas instituições, abandonar práticas anacrônicas e investir em uma defesa nacional que faça sentido no século XXI.

Mas enquanto o debate não avança— bloqueado por uma mistura tóxica de corporativismo, nostalgia e preguiça intelectual —, centenas de milhares de jovens continuarão marchando rumo às juntas militares. Não por vocação, não por patriotismo, mas por obrigação legal.

O Brasil continuará investindo fortunas para manter um exército numeroso e mal preparado, cuja função principal tem sido preservar uma ordem social herdada da colonização, enquanto as verdadeiras ameaças à soberania nacional, como a vulnerabilidade cibernética, nuclear e aeroespacial, a dependência de armamento e equipamento estrangeiro e ameaças de guerra híbrida e desestabilização informacional, permanecem praticamente ignoradas.

Essa situação decorre da ausência de uma reforma militar profunda que redefina o papel das Forças Armadas, que hoje se veem divididas entre o combate ao “inimigo interno” e a defesa externa, sem capacidade real para enfrentar agressões estrangeiras.

Enquanto isso, o país mantém centenas de unidades militares irrelevantes para a proteção do território.

Essa realidade só mudará com uma reforma que acabe com o distúrbio funcional das corporações militares, que hoje acumulam funções policiais, sociais e administrativas, e que estabeleça claramente a missão exclusiva das Forças Armadas na defesa da soberania nacional, com foco na coesão nacional, na integração regional e no desenvolvimento da capacidade própria de produção de equipamentos estratégicos.

O prazo do alistamento termina dia 30 de junho.

Mas o prazo para enterrarmos esse anacronismo? Esse, infelizmente, parece não ter data marcada. Afinal, mexer com as Forças Armadas no Brasil sempre foi um tabu. E assim, entre o medo e a inércia, perpetuamos o absurdo e pagamos caro por ele.

*Gustavo Guerreiro, doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 17/06/2025