Por Gustavo Guerreiro*, especial para o Viomundo

Há algo de profundamente perturbador, mas também revelador, quando um homem escreve seu testamento sabendo que será assassinado.

Mais perturbador ainda quando esse testamento, como o do jornalista Anas Al-Sharif, da Al Jazeera, morto por um ataque israelense em 10 de agosto de 2025, revela-se não apenas um documento político, mas um texto sagrado da mais pura religião moderna: o nacionalismo.

“Se estas palavras chegarem até vocês, saibam que Israel conseguiu me matar”, escreveu Al-Sharif em seu testamento póstumo.

Mas o que mais impressiona não é a previsão certeira de sua morte, pois Israel vinha ameaçando-o sistematicamente há meses, mas a linguagem litúrgica com que reveste seu sacrifício.

“Ó Alá, aceite-me entre os mártires… faça do meu sangue uma luz que ilumine o caminho da liberdade para meu povo.”

Aqui, o divino e o nacional se fundem em uma espécie de eucaristia cívica onde o sangue derramado não redime pecados, mas um povo e um território.

O sociólogo Benedict Anderson percebia as nações como “comunidades imaginadas”. O que ele talvez não tenha enfatizado suficientemente é que essas comunidades não apenas são imaginadas, mas sacralizadas.

O nacionalismo não substituiu a religião; ele é a religião dominante da modernidade, completa com seus mártires, relíquias, liturgias e promessas de imortalidade.

Considerem a estrutura do testamento de Al-Sharif. Não é uma despedida secular, mas uma oração. “Confio a vocês a Palestina – a joia da coroa do mundo muçulmano, o coração de cada pessoa livre neste mundo.”

A pátria aqui não é apenas território; é entidade transcendental, merecedora de adoração e, crucialmente, de sacrifício humano.

O Ocidente “civilizado” distingue obsessivamente entre o “fanático religioso” que morre por Alá e o “patriota heroico” que morre pela pátria. Como se houvesse diferença substancial entre morrer gritando “Deus é grande” ou “Viva a França livre”.

Al-Sharif, em sua honestidade brutal, dissolve essa distinção confortável ao fundir ambas as invocações: morre simultaneamente por Alá e pela Palestina, sem ver contradição alguma.

Segundo dados do Committee to Protect Journalists, 184 jornalistas palestinos foram mortos desde outubro de 2023. Mas reduzir isso a estatísticas é perder o ponto central: cada uma dessas mortes é um sacrifício no altar da nação, e cada testamento é um texto sagrado dessa religião cívica que todos praticamos, mas poucos reconhecem como tal.

O que torna o caso de Al-Sharif particularmente revelador é como seu testamento materializa, com clareza cristalina, a tese de que o nacionalismo não é uma ideologia política entre outras, mas o sucessor direto dos grandes sistemas culturais religiosos pré-modernos.

Oferece a mesma promessa fundamental: a imortalidade através da absorção no corpo místico da nação. “Não esqueçam Gaza. E não me esqueçam em suas orações sinceras”, implora Al-Sharif no final de seu testamento.

Mas que tipo de imortalidade é essa, senão a mesma prometida pelos antigos cultos aos heróis? O jornalista morto vive na memória coletiva, seu sangue fertiliza simbolicamente o solo pátrio, sua história é contada e recontada como hagiografia nacional.

Permitam-me aqui um parêntese pessoal: sempre me intrigou como nós, brasileiros, tratamos nossos “heróis nacionais”. Tiradentes pendurado como Cristo republicano, Getúlio transformado em pai dos pobres mesmo depois de morto, Tancredo Neves canonizado antes mesmo de assumir.

Não são santos no sentido católico tradicional, mas ocupam exatamente o mesmo espaço psíquico e cultural. E isso nos leva a outro aspecto perturbador dessa história toda.

O que mais incomoda é a hipocrisia monumental da imprensa ocidental, tão eloquente quando se trata de defender correspondentes presos na Rússia ou em Mianmar, mas que emudece diante do massacre sistemático de colegas palestinos.

O caso de Evan Gershkovich, do Wall Street Journal, detido na Rússia, mobilizou campanhas internacionais, cartas abertas, editoriais inflamados. Mas onde estão as campanhas equivalentes para Al-Sharif, que foi ameaçado publicamente por Israel desde novembro de 2023, teve o pai de 90 anos morto num bombardeio e ainda assim continuou reportando?

A resposta é óbvia: o palestino morto não ativa os mesmos circuitos de empatia que o ocidental preso.

Um é mártir de uma causa “controversa”; o outro, vítima inequívoca de autoritarismo.

Mas voltemos ao testamento de Al-Sharif e sua dimensão teológica. “Eu testemunho diante de Alá que estou contente com Seu decreto, certo de encontrá-Lo, e assegurado de que o que está com Alá é melhor e eterno.” Mas logo em seguida: “Se eu morrer, morro firme em meus princípios.” Quais princípios? Os da nação palestina, é claro.

Aqui está o nó górdio da questão: o nacionalismo moderno não elimina o sagrado, apenas o desloca.

A bandeira substitui o ícone, o hino nacional torna-se o cântico sagrado, o território pátrio transforma-se em Terra Santa. E o mais inquietante: fazemos isso naturalmente, sem questionar, como se amar a pátria até a morte fosse tão natural quanto respirar. Mas não é natural, mas aprendido, cultivado, ritualizado.

Desde pequenos, somos ensinados a nos emocionar com os símbolos nacionais, a venerar os heróis pátrios, a considerar sagrado o solo nacional. No Brasil, quem não se lembra das intermináveis horas cantando o hino na escola, hasteando a bandeira, decorando as datas cívicas? Era catequese nacionalista, pura e simples.

O que o testamento de Al-Sharif expõe com brutalidade é o paradoxo central do nacionalismo como religião: ele promete imortalidade através da morte voluntária. “Faça do meu sangue uma luz”, ele implora. Não é metáfora, é liturgia.

O sangue do mártir nacional tem poder sacramental, transforma-se em símbolo de redenção coletiva.

Israel já havia acusado Al-Sharif de ser “terrorista”, parte de seu protocolo padrão de desumanização. Mas o que é um “terrorista” senão alguém cuja religião nacional não reconhecemos como legítima? O partizan francês era terrorista para os nazistas, o vietcong era terrorista para os americanos, o revolucionário americano era terrorista para os britânicos.

A diferença entre terrorista e freedom fighter (desculpem o anglicismo, mas ele é revelador) é puramente questão de perspectiva teológico-nacional.

Ernest Renan disse que uma nação é um plebiscito diário. É também uma missa diária, com seus rituais de reafirmação da fé coletiva. O testamento de Al-Sharif funciona como homilia dessa missa, relembrando aos fiéis (compatriotas) seus deveres sagrados para com a pátria.

“Sejam pontes para a libertação da terra e seu povo, até que o sol da dignidade e da liberdade nasça sobre nossa pátria roubada”, escreveu o jornalista. Não é apelo político, mas uma convocação religiosa. A “terra prometida” aqui é literal, e a libertação não é apenas política, mas escatológica.

Seria fácil e intelectualmente desonesto simplesmente condenar o nacionalismo como ilusão perigosa. A questão é mais complexa. Numa era de capitalismo globalizado que dissolve todas as solidariedades tradicionais, o nacionalismo oferece algo que o mercado não pode: sentido, pertencimento, transcendência.

Al-Sharif não morreu por PIB ou taxa de câmbio. Morreu por algo que considerava maior que ele mesmo. Que esse “algo” seja uma construção social, uma “comunidade imaginada”, não diminui seu poder psicológico e social. Pelo contrário: as ficções mais poderosas são aquelas que não reconhecemos como ficções.

Se há algo a extrair dessa tragédia, além da óbvia condenação do massacre do povo palestino, é a urgência de desnaturalizar o nacionalismo nos currículos educacionais.

Não para eliminá-lo (tarefa impossível e provavelmente indesejável), mas para compreendê-lo através da lente que Émile Durkheim oferece para a religião: como um sistema unificado de crenças e práticas relativas a coisas sagradas que une os indivíduos em uma comunidade moral.

Imaginem se, nos cursos de Relações Internacionais e Ciências Sociais, analisássemos testamentos como o de Al-Sharif não como meros documentos políticos, mas como textos que consagram os símbolos sagrados dessa “religião secular”.

Talvez então compreenderíamos melhor por que jovens se explodem pelo Iraque ou por que estadunidenses invadem países por “liberdade”. São todas variações do mesmo fenômeno: a sacralização do coletivo nacional, onde a nação se torna o princípio transcendente cuja veneração e defesa oferecem aos indivíduos a promessa de transcendência e perpetuação através do sacrifício, tal como nas religiões tradicionais descritas por Durkheim.

Al-Sharif pediu para não ser esquecido. É tentador lembrá-lo apenas como um mártir, mas isso o reduziria a um símbolo da mesma lógica de conflito que o consumiu. Talvez haja um caminho mais profundo.

Sua própria luta aponta para ele. A verdadeira causa nacional não reside no culto cego a uma bandeira ou a linhas imaginárias no mapa. A verdadeira causa nacional, aquela pela qual vale a pena viver e morrer, é a que se constrói sobre valores que a transcendem: a justiça, a dignidade humana, a liberdade e o direito de um povo a existir em sua terra com soberania e paz. É a defesa destes princípios universais que confere legitimidade a um projeto nacional.

A lucidez de Al-Sharif ao afirmar ”Alá sabe que dei todos os esforços e toda minha força para ser apoio e voz para meu povo”, não foi um ato por um tribalismo vazio, mas sim por esse direito fundamental.

Honrar sua memória, portanto, não é celebrar a morte, mas sim absorver a essência de sua luta pela vida.

O melhor tributo é continuar a defender, com firmeza e clareza moral, que o projeto sionista, ao se fundar na negação desses valores para o povo palestino, falha em sua pretensão de representar uma “nação” no seu sentido mais nobre. A verdadeira causa nacional palestina é a resistência política contra a ocupação, em nome daqueles grandes ideais que são o patrimônio de toda a humanidade.

Que Alá ou a História julgue não a nossa devoção a um pedaço de terra, mas a nossa fidelidade aos princípios de humanidade que devem iluminar qualquer projeto coletivo.

A memória de Al-Sharif nos convoca não a morrer por uma abstração, mas a viver e lutar por uma ideia maior.

*Gustavo Guerreiro é doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 19/08/2025