Greve digital

por Lorena Vasconcelos Porto

Em 2023, a greve geral contra a reforma da previdência na França foi amplamente noticiada pela mídia nacional[1]. Não é a primeira vez que os franceses usam esse instrumento para protestar contra políticas econômicas e sociais do Governo, sendo comum a paralisação do transporte público, até para evitar que as demais pessoas cheguem ao trabalho. Esse movimento, no entanto, poderia ser esvaziado pelo home office, que se expandiu consideravelmente com a pandemia do novo coronavírus[2]. Surgiu, então, a ideia de bloquear as plataformas e redes digitais indispensáveis ao trabalho e, no dia 09 de fevereiro de 2023, a confederação sindical CGT reivindicou o corte de eletricidade que alimenta três servidores (data centers) em Seine-Saint-Denis, próximo a Paris[3].

Na França, o direito de greve é assegurado pela Constituição[4] e pela Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 28), as quais não o definem. Para a jurisprudência da Corte de Cassação, a greve é a cessação coletiva total do trabalho, o que acaba por privar categorias de obreiros desse direito fundamental. Em razão da mecanização e robotização, a cessação do trabalho humano pode não implicar a interrupção da produção empresarial. Um exemplo são as linhas automatizadas do metrô de Paris que circulam sem condutor[5]. Para que ocorra a paralisação do metrô, não basta que os condutores cessem o seu trabalho; é necessária a parada dos veículos a partir do centro de controle que os opera à distância.

Para cumprir as normas constitucionais e internacionais que garantem o direito de greve, é imprescindível ampliar o seu conceito. Emmanuel Dockès, inspirando-se na Corte Europeia de Direitos Humanos[6], propõe que a cessação do trabalho, na greve, não é a interrupção de toda atividade, mas sim da subordinação; é a cessação coletiva da obediência em apoio às reivindicações dos trabalhadores[7].

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, conferiu grande amplitude ao direito de greve, prevendo que cabe “aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. A greve é reconhecida como um direito em diversos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como a Carta da Organização dos Estados Americanos – OEA (art. 45.c), o Protocolo de San Salvador (art. 8.1.b) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC (art. 8.d).

Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, há três categorias de greves: as trabalhistas, que buscam melhorar as condições laborais ou de vida dos trabalhadores; as sindicais, que veiculam as reivindicações coletivas dos sindicatos; e as que contestam políticas públicas. A mesma Corte adverte que a legalidade é um elemento central para o exercício do direito de greve, de modo que as condições e requisitos para considerá-la lícita não devem ser complexos a ponto de inviabilizá-la[8].

Todavia, a greve é conceituada legalmente no Brasil como “a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador” (artigo 2º da Lei n. 7.783/89).

O conceito de greve, no entanto, deve ser ampliado para abranger as ações realizadas pelos sindicatos ou pelos trabalhadores para a tutela de seus interesses, inclusive com comportamentos ativos. Nesse contexto, destaca-se a greve digital, que abarca a ação coletiva de trabalhadores que ocupam ou obstruem espaços virtuais utilizados pelo empregador para as suas atividades, práticas comerciais e comunicações, podendo diminuir ou impedir temporariamente a produção empresarial e, inclusive, a prestação laborativa daqueles que não aderiram ao protesto (piquete digital). Essa greve é especialmente eficaz contra empresas que utilizam tecnologias informáticas para a gestão, produção, distribuição, venda e relações com trabalhadores, fornecedores, clientes etc. Um exemplo seriam múltiplas conexões ao site do empregador, para torná-lo mais lento ou impedir o seu acesso durante o período da mobilização, ou o “entupimento” da caixa de e-mails da empresa.

Tais ações podem ter objetivos trabalhistas, sindicais ou de contestação de políticas públicas, na linha da amplitude do direito de greve assegurada pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. A necessidade de observância desses tratados e da jurisprudência da Corte Interamericana, bem como do controle de convencionalidade das normas internas -, entre as quais, a Lei de Greve –[9], foi reafirmada na Recomendação n. 123/2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[10], e na Recomendação n. 96/2023, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[11].

A greve foi e tem sido a grande arma dos trabalhadores e dos sindicatos para criar direitos e torná-los mais eficazes, e não apenas para fins trabalhistas, mas para a promoção das classes oprimidas em geral. Por isso, as leis estão sempre tentando capturá-la, e ela sempre buscando fugir[12]. É, portanto, necessária a adoção de um conceito dinâmico, e não anacrônico, o que abrangeria a greve digital.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.


Lorena Vasconcelos Porto é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.

[1] DOCKÊS, Emmanuel. ILO. A revolta francesa e a defesa dos ideais democráticos. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/a-revolta-francesa-e-a-defesa-dos-ideais-democraticos/>. Acesso em 21 fev.2025; e PORTO, Lorena Vasconcelos. Quem tem medo de greve? Disponível em: <https://jornalggn.com.br/trabalho/quem-tem-medo-de-greve-por-lorena-vasconcelos-porto/#_ftn2>. Acesso em 21 fev. 2025.

[2] DARES. Télétravail durant la crise sanitaire. Disponível em: <https://dares.travail-emploi.gouv.fr/publication/teletravail-durant-la-crise-quelles-pratiques-quels-impacts-sur-le-travail-et-sur-la-sante>. Acesso em 21 fev. 2025.

[3] LARMAGNAC-MATHERON, Octave. Réforme des retraites : vers la grève numérique ?. Disponível em: <https://www.philomag.com/articles/reforme-des-retraites-vers-la-greve-numerique>. Acesso em 21 fev. 2025.

[4] Preâmbulo da vigente Constituição de 1958 c/c preâmbulo da Constituição de 1946: <https://www.conseil-constitutionnel.fr/le-bloc-de-constitutionnalite/texte-integral-de-la-constitution-du-4-octobre-1958-en-vigueur> e <https://www.conseil-constitutionnel.fr/le-bloc-de-constitutionnalite/preambule-de-la-constitution-du-27-octobre-1946>. Acesso em 21 fev. 2025.

[5] ÎLE DE FRANCE MOBILITÉS. Métro: la ligne 4 est 100 % automatisée. Disponível em: <https://www.iledefrance-mobilites.fr/actualites/ligne-metro-4-automatisation>. Acesso em 21 fev. 2025.

[6] Trata-se da decisão de 17 de julho de 2007, no Caso Dilek e outros vs. Turquia, que protegeu a ação dos empregados das cabines de pedágio que deixaram passar veículos sem pagar durante três horas, a qual foi considerada uma legítima ação coletiva geral no contexto do exercício dos direitos sindicais (parágrafo 57). CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Affaire Dilek et autres c Turquie (Requêtes nos 74611/01, 26876/02 et 27628/02). 17 juillet 2007. Disponível em: <https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-81713>. Acesso em 21 fev. 2025.

[7] DOCKÈS, Emmanuel. Insubordination, propriété et action collective. Hal Open Science, 18 mar. 2019. Disponível em: <https://hal.parisnanterre.fr/hal-02070645/document>. Acesso em 21 fev. 2025.

[8] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinión Consultiva OC-27/21 de 5 de mayo de 2021 solicitada por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Derechos a la Libertad Sindical, Negociación Colectiva y Huelga, y su relación con otros Derechos, con perspectiva de Género. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_27_esp1.pdf>. Acesso em 21 fev. 2025. Parágrafos 99 e 100.

[9] PORTO, Lorena Vasconcelos. Quem tem medo de greve? Disponível em: <https://jornalggn.com.br/trabalho/quem-tem-medo-de-greve-por-lorena-vasconcelos-porto/>. Acesso 21 fev. 2025.

[10] CNJ. Recomendação n. 123, de 7 de janeiro de 2022. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/files/original1519352022011161dda007f35ef.pdf>. Acesso em 21 fev. 2025.

[11] CNMP. Recomendação n. 96, de 28 de fevereiro de 2023. Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomendao-n-96—2023.pdf>. Acesso em 12 fev. 2025.

[12] VIANA, Márcio Túlio. Da greve ao boicote: os vários significados e as novas possibilidades das lutas operárias. Disponível em: <https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/74062/2009_viana_marcio_greve_boicote.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 21 fev. 2025.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 10/03/2025