do Substack: Amanhã não existe ainda
Greta
por Luis Felipe Miguel
Vou confessar para vocês: quando Greta Thunberg irrompeu na cena pública, eu não fui muito com a cara dela. Uma adolescente de 16 anos, articulada e corajosa, sim, mas com tudo para virar a face pública do ambientalismo acomodado, aquele que fala em “desenvolvimento sustentável” e, no fim das contas, passa pano pro capitalismo. Sabe aquele símbolo de uma revolta que se torna produto de consumo, que serve para a sociedade pensar que estamos fazendo alguma coisa e aplacar sua consciência? Pois é.
Daí ela entrou nos circuitos oficiais: reuniões das Nações Unidas, encontros com Barack Obama, discurso em Davos. Parecia que era isso mesmo. E que jovenzinha – ou jovenzinho – resistiria ao glamour de estar neste meio, com os grandes do mundo ouvindo ou fingindo ouvir o que você tem para dizer?
Cooptação pura.
O filósofo Paul Ricœur dizia que nós, homens e mulheres do século XX, herdamos de Marx, Nietzsche e Freud uma “hermenêutica da suspeita”, segundo a qual nenhum discurso pode ser aceito sem desconfiança, simplesmente pelo que diz, já que todos buscam esconder os interesses aos quais servem. Eu não saco muito de Ricœur e, da trindade que ele cita, apenas Marx frequenta meu panteão. Mas me reconheço nesta definição. Sou um homem do século XX, portanto.
Quando eu vejo, por exemplo, uma jovem liderança indígena brasileira, também referenciada na questão ambiental, vendendo sua imagem para ser “embaixadora” (nome chique para garota-propaganda) de um banco digital, penso que minha desconfiança tem razão de ser.
(Talvez o século XXI, esse das fake news, das bolhas de irracionalidade gozosa, das manipulações geradas por IA, venha a ser marcado por uma “hermenêutica da credulidade”, quando não da falta de noção. Não me parece ser uma evolução. Mas, claro, isto é só um comentário lateral provocativo.)
Pois bem: Greta me ganhou. Ela tem mostrado que não teme desagradar este mundo oficial que tentou cooptá-la, que não está disposta a domesticar sua indignação.
A guria é porreta.
Seu esforço em favor dos palestinos é a maior demonstração disso. Ao embarcar no Madleen, com o objetivo de furar o bloqueio de Israel e levar ajuda humanitária a Gaza, junto de um punhado de outros ativistas (incluindo o brasileiro Thiago Ávila), ela sabia dos riscos que estava correndo.
Risco de vida, sim, já que sabemos que Israel não se incomoda de matar agentes humanitários. A presença de Greta funcionava, de fato, como uma espécie de escudo, já que sua notoriedade mundial certamente faz os sionistas pensarem duas vezes.
Sobretudo, riscos simbólicos. O ódio da extrema-direita ela já tinha – quem não se lembra de Bolsonaro espumando de raiva e a chamando de “pirralha”? (Esperta, Greta mudou sua descrição no Twitter para “pirralha”, assim, em português, depois da explosão do hoje réu.) Mas ela se torna cada vez menos aceitável para aqueles que antes queriam dialogar com ela, fazendo aquele teatrinho de “nos preocupamos com o clima” e “vamos tentar salvar o planeta” (desde que continue tudo igual).
Inclusive para a mídia que a tornara esta celebridade global. Sua presença na embarcação, mais ainda do que servir de escudo, tinha o propósito de romper o absurdo muro de silêncio que, cada vez mais, cerca o genocídio do povo palestino.
A ofensiva de Israel já completou 18 meses e continua inclemente. Todos os dias, dezenas de palestinos são mortos. Gaza já é quase só escombros, mas as tropas de ocupação parecem dispostas a não parar até que literalmente não sobre pedra sobre pedra.
Para o jornalismo, porém, é notícia velha.
Israelenses matando palestinos? Parte da normalidade. Não vale uma reportagem.
A imprensa brasileira é um ponto fora da curva, pela absoluta debilidade de seu noticiário internacional, pelo igualmente gigantesco estadunidocentrismo do pouco que noticia e, sobretudo, por sua falta de disposição para qualquer enfrentamento aos interesses sionistas que a pressionam. Mas, com raras exceções, pelo mundo afora, o drama do povo palestino recebe muito menos cobertura do que devia.
A própria ação de Greta Thunberg mereceu menos atenção da imprensa corporativa do que seria de se esperar.
Silenciar as vozes críticas é uma prioridade absoluta para os sionistas. Por isso, a pressão que fazem sobre a mídia e sobre a indústria cultural é tão forte.
Mas é um genocídio que se desenrola diante de nós. Mais de 50 mil crianças palestinas foram mortas ou feridas desde outubro de 2023 – uma das maiores mortandades de crianças da história. À população de Gaza, é negado o acesso a água, comida, energia, medicamentos, educação. Médicos, jornalistas e agentes humanitários são alvos preferenciais dos homicidas sionistas.
Mais de 200 jornalistas palestinos já foram assassinados por Israel em menos de dois anos. E a mídia corporativa, gosta de parecer tão corajosa na defesa da “liberdade de imprensa”, silencia.
Acredito que muita gente evita falar ou mesmo pensar em Gaza porque parece uma situação impossível. Como se o mundo todo fosse impotente para parar Israel antes de que o último palestino seja morto. Neste caso, desviar os olhos seria, talvez, uma reação de autoproteção.
Mas não é assim. A ferocidade dos sionistas é também uma demonstração de suas fraquezas. A economia israelense está em crise. Nestes 18 meses, mais de 50 mil negócios fecharam as portas. Muitos de seus donos migraram para o exterior, como parte do meio milhão de israelenses que abandonaram o território nos últimos meses. A campanha de boicote, desinvestimento e sanções contra corporações que operam em Israel tem, pouco a pouco, ganhado força e todas as semanas novas empresas anunciam que vão encerrar seus negócios com o Estado genocida. Creio que todos nós já vimos os vídeos repulsivos de soldados israelenses tripudiando de suas vítimas, mas o que não é tão visível é o fato de que há um crescente contingente de jovens israelenses que se recusam a participar do massacre – mais de 100 mil pararam de comparecer ao serviço de reserva militar. As fraturas na sociedade israelense estão cada vez mais expostas.
Não é certamente para hoje, nem mesmo para amanhã, mas é, sim, possível derrotar Israel – e, a partir daí, sonhar com um novo futuro para a Palestina e para todos os povos que nela habitam. Para isso, é fundamental que a consciência mundial não silencie e cobre, de todos aqueles que detêm algum tipo de poder, o rompimento com o Estado assassino de Israel. Isto significa boicotar empresas, exigir que nossas universidades e centros de pesquisa suspendam qualquer tipo de cooperação, pressionar o presidente Lula a passar das palavras para as ações e impedir que matérias-primas brasileiras continuem colaborando com a matança de civis palestinos.
É preciso sempre voltar a chamar a atenção sobre o que está acontecendo em Gaza neste momento. Caso contrário, o futuro não nos perdoará, assim como não perdoamos aqueles que fecharam os olhos para o genocídio dos judeus promovido pela Alemanha nazista.
Greta Thunberg está fazendo a parte dela. Cada um de nós, modestamente, também pode fazer a sua.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular). Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).
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