A nova etapa da política cultural do Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura (MinC), tem um foco claro: descentralizar o uso dos incentivos fiscais da Lei Rouanet e garantir que a produção cultural de regiões historicamente menos contempladas, como o Nordeste, tenha maior acesso a esses recursos.
O Programa Rouanet Nordeste, que será lançado oficialmente em Crato (CE) no dia 7 de agosto, representa o maior edital regional desde que o MinC passou a firmar parcerias com empresas públicas e privadas em 2023. Estão envolvidos R$ 40 milhões para iniciativas culturais nos nove estados da região, além de áreas do norte de Minas Gerais e norte do Espírito Santo.
Mais do que um novo repasse financeiro, o programa integra uma mudança de paradigma: ampliar a participação cultural, reconhecendo e fortalecendo expressões locais, sobretudo aquelas protagonizadas por grupos sociais tradicionalmente excluídos dos mecanismos de fomento público.
Capacitação: o elo que faltava entre agentes culturais e recursos
Junto ao lançamento do programa, o MinC e o Serviço Social da Indústria (Sesi) iniciarão uma rodada de oficinas de capacitação voltadas a agentes culturais da região. O objetivo é ensinar a elaborar, inscrever e executar projetos culturais, além de prestar contas — um dos principais entraves para proponentes iniciantes.
Segundo Henilton Menezes, secretário de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic), trata-se de uma ação estratégica para democratizar o acesso à Rouanet: “Com o programa Rouanet Nordeste, estamos expandindo o acesso aos recursos da Lei Rouanet para agentes culturais de estados historicamente menos contemplados com o fomento.”
A proposta é que os participantes saiam dos encontros com seus projetos prontos para serem submetidos à análise do MinC. Dez oficinas já estão no calendário, abrangendo todas as capitais nordestinas e com suporte virtual via YouTube.
Desigualdade histórica no mapa da cultura: os dados por trás do programa
Os números confirmam a desigualdade na distribuição de recursos via Lei Rouanet:
- Apenas 3,8% dos recursos patrocinados por empresas são de companhias sediadas no Nordeste.
- A região responde por 6,8% do valor total captado por proponentes.
- O Sudeste, em contraste, concentra 77,8% dos recursos patrocinados e 76,9% dos recursos captados.
Mesmo com um avanço de 47% na captação nordestina entre 2023 e 2024, o cenário ainda é desproporcional. O Ceará, por exemplo, foi o destaque regional, mas seu volume de captação continua distante das cifras obtidas por Rio de Janeiro e São Paulo — que, juntos, captaram mais de R$ 1,5 bilhão apenas em 2024.
A explicação não é só o favoritismo institucional. Muitas vezes, grupos culturais de fora do eixo Sul-Sudeste nem se sentem aptos a disputar os editais. “Achavam que aquilo não era para eles”, comenta Menezes.
Nacionalização sem deslocamento: ampliar sem tirar de ninguém
Uma das falas mais repetidas pelo MinC é a de que não se trata de tirar recursos do Sudeste, mas sim de criar condições para que outras regiões também participem do processo.
Segundo dados do próprio MinC, entre 2023 e 2024, os recursos captados via Rouanet aumentaram R$ 800 milhões, um salto de 37% em relação ao último ano do governo anterior. O crescimento foi proporcional em todas as regiões, mas as maiores taxas de variação foram registradas nas áreas historicamente negligenciadas:
- Sudeste: +25%
- Norte: +260%
- Nordeste: +47%
Estatais entram no jogo: Petrobras e bancos como vetores de mudança
A articulação com empresas públicas é um dos pilares dessa nova fase da Lei Rouanet. No caso da Petrobras, por exemplo, o edital mais recente destinou R$ 250 milhões, com uma distribuição regional equitativa: 15% para cada uma das cinco regiões do país e 25% restantes em disputa nacional.
Essa política de cotas foi considerada um marco, já que até 2019, 80% dos recursos da estatal iam para Rio, São Paulo e Minas Gerais. Outros grandes parceiros do programa incluem o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o Banco do Nordeste, o Serpro e a Transpetro.
O Banco do Nordeste, especificamente, deve liberar ainda R$ 10 milhões adicionais, destinados a projetos em sua área de atuação — que inclui o Nordeste, norte mineiro e norte capixaba.
Audiovisual: setor estratégico no desenvolvimento regional
O setor audiovisual tem se destacado como um dos grandes beneficiários e alvos estratégicos desse esforço de descentralização. A Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste (Conexão CONNE), que reúne produtoras das três regiões, aponta que o audiovisual tem forte potencial de geração de emprego e renda local.
Segundo Gabriel Pires, diretor da entidade: “O investimento em cultura, especialmente no setor audiovisual, tem um forte efeito multiplicador, pois envolve a contratação de uma ampla rede de prestadores de serviços.”
Pires defende também a expansão da lógica do Rouanet para outros mecanismos, como a Lei do Audiovisual, que permite 100% de isenção fiscal para patrocinadores. O objetivo é ampliar ainda mais o ecossistema de financiamento regional.
Boatos e desinformação: o que é verdade sobre a Rouanet
Apesar do avanço, o programa ainda enfrenta desinformações recorrentes. Entre elas, a de que artistas são escolhidos por afinidade ideológica com o governo.
O MinC é enfático ao negar essas alegações. O processo de aprovação de projetos envolve etapas técnicas, pareceres especializados e a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, formada paritariamente por sociedade civil e governo.
Henilton Menezes reforça: “Não há escolha pessoal. Todos os projetos são submetidos online, avaliados tecnicamente e direcionados às instituições competentes, como Iphan, Funarte, Ancine, entre outras.”
Rumo à democratização cultural
O Rouanet Nordeste é, em essência, a materialização de uma nova visão para o fomento à cultura no Brasil. A proposta do Governo Lula 3 não é apenas ampliar o volume de investimentos, mas garantir que esses recursos cheguem a todos os cantos do país, contemplando a diversidade que define a identidade brasileira.
Capacitar, incentivar e mediar. São essas as três palavras-chave da nova política cultural, que busca dar voz, palco e recursos aos muitos Brasis que até hoje permaneciam às margens da cena cultural patrocinada.
“Nosso objetivo é fazer com que os agentes culturais, de qualquer lugar do Brasil, possam dizer: ‘Eu posso apresentar uma proposta no Ministério da Cultura’”, resume Menezes. E agora, cada vez mais, eles podem mesmo.