Entre manter o crescimento e colocar o pé no freio, o governo optou pela primeira alternativa, apesar do risco de atiçar a inflação, principal destruidora de capital político. O Palácio do Planalto tomou, no entanto, certos cuidados para avançar no caminho minado até 2026 e torce pela confirmação de alguns fatores, entre eles a tendência de redução dos preços dos alimentos e da energia. A cautela consiste em irrigar o poder de consumo com recursos que não repercutem no valor dos produtos nem na situação fiscal e em manter firme o investimento, principal motor do crescimento consistente.
O fator mais importante de corrosão da popularidade do presidente Lula, a inflação de alimentos, começa a ceder com a entrada, neste mês, de uma safra recorde estimada em 325,7 milhões de toneladas. Uma produção que estará a salvo, neste ano, dos distúrbios climáticos decorrentes do fenômeno El Niño. A queda no ritmo dos aumentos de preços tende a se acentuar caso a guerra da Ucrânia chegue ao fim em breve, conforme a imposição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O preço da carne bovina, que caiu 15% em fevereiro na comparação com dezembro, pode ter nova redução, em torno de 10%, segundo informaram representantes do agronegócio em reunião com o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, na quinta-feira 27. A alta da produção de milho e soja, utilizados como ração animal, fará baixar os custos das carnes de porco e de frango, assim como do óleo de cozinha, que subiu 29,2% no ano passado.
Manter o crescimento é crucial para o aumento do emprego e das receitas tributárias e o cumprimento do arcabouço fiscal. Também alivia a enorme pressão recessiva desencadeada pelas taxas de juro de dois dígitos. O sistema financeiro teme, entretanto, o aquecimento da economia e as pressões inflacionárias decorrentes, por tomar pontos de partida equivocados, como se verá adiante. Para manter a economia em expansão, o governo ampliou a concessão de empréstimos consignados, com juros até 70% abaixo daqueles oferecidos pela banca privada, e vai liberar 12 bilhões de reais do FGTS aos demitidos que aderiram ao saque-aniversário, recursos que não alteram a situação fiscal.
Manter o crescimento é decisivo para o arcabouço fiscal
Ainda assim, os analistas e operadores do sistema financeiro fizeram cara feia. Há uma semana, eles tinham revisto para baixo as apostas em relação à Selic, diante de alguns sinais de esfriamento da atividade. Essa perspectiva não se confirmou, em um primeiro momento, como mostraram a recuperação da geração de empregos e a resistência da inflação. Os dados do IPCA–15, o maior dos últimos três anos, e a forte geração de empregos, com a abertura de 137 mil vagas no mercado formal em janeiro, foram respondidos com a desvalorização do real.
Dados de fevereiro apontam, entretanto, um freio na geração de postos de trabalho e uma confirmação da desaceleração dos preços dos alimentos. José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator, apontou, em sua análise mais recente, “dados fracos nos mercados formal e informal de trabalho em janeiro e forte queda no ritmo de crescimento interanual do salário real de contratação, de 3,3% para 2%, principalmente pela aceleração da inflação. A alta nominal cedeu de 6,7% para 6,3%”.
A prévia do IPCA–15, divulgada na terça-feira 25, mostra queda de 0,37 ponto porcentual do item alimentação, em casa e fora do domicílio, na comparação com janeiro. O índice geral subiu, influenciado pelos preços da habitação. O comportamento dos reajustes dos alimentos é crucial para 2026. As pesquisas mostram que a aprovação de Lula caiu mais entre quem ganha até dois salários mínimos, entre mulheres e no Nordeste, precisamente os eleitores mais sensíveis aos preços da cesta básica e que gastam a maior parte dos rendimentos com comida.

Óbvio ululante. Sem crescimento não há ajuste possível nas contas públicas, lembra o ministro Haddad – Imagem: Washington Costa/Ministério da Fazenda
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, repete o óbvio: se o Brasil não crescer, não existe ajuste fiscal possível, pois o aumento das receitas é possível apenas com a expansão do PIB. O que está certo e o que seria preciso rever, ou complementar, nas iniciativas do governo? Segundo o economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor da PUC de São Paulo, é preciso ir além da conjuntura de curto prazo. A economia cresce, mas o investimento, base da ampliação da capacidade de produção, também aumenta. Para um crescimento do PIB de 3,5% previsto para 2024, o investimento deve ter aumentado mais que o dobro. Há que se considerar, portanto, que, juntamente com a demanda, o investimento se acelera, efeito confirmado pelos dados, como a emissão de papéis privados, entre outros, e os desembolsos do BNDES. “Ou seja, o risco de tentar esfriar demais a demanda é fazer o investimento se retrair junto, lembrando que as decisões de investimentos respondem à expectativa de demanda futura e à rentabilidade marginal do capital, ou seja, o lucro”, acrescenta o economista.
Para vislumbrar qual deve ser o desfecho mais provável nessa disputa entre crescimento e contenção, ressalta Lacerda, é preciso enxergar além do retrovisor e olhar pelo para-brisa. “Assim como estimular demais a atividade econômica pode trazer problemas, algo que não vejo acontecer, também um açodamento nas medidas restritivas pode jogar a criança com a água suja do banho, o que também não vejo no horizonte. O Banco Central e a equipe econômica acompanham os dados e análises e saberão, como têm feito, adotar medidas no tom e no timing adequados.”
De acordo com o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp, o problema central é a inflação, em especial aquela relacionada ao dólar, e há um entrave que não existia nos mandatos anteriores de Lula, o fantasma do governo Dilma que ronda o governo do PT, agora de forma permanente. “É o temor de que o governo vá perder o controle das contas públicas, quebrar o País e alimentar a inflação. Este é o discurso que está pronto a todo momento, em todo lugar, toda vez que se vai falar de gestão do PT”, dispara Ruas.
O risco de esfriar demais a demanda é fazer o investimento retrair-se junto
Ou o governo controla a inflação, prossegue o economista, ou a coisa vai desandar. Se não conseguir, o Planalto não permitirá ao BC baixar a taxa de juros no segundo semestre. E se começar 2026 com a taxa de juros no atual patamar, não tem como ganhar a eleição. Esse é o ponto central. A influência do câmbio é um problema considerável no contexto de um mercado internacional muito sensível, ainda mais por conta da vitória de Trump. “Qualquer brisa vira um vendaval ou pior”, sublinha Ruas.
O Banco Central parece disposto, entretanto, a não soltar as rédeas do mercado, como ocorreu em dezembro, quando o dólar passou de 6 reais, impelido pela ação tardia da autoridade monetária, apesar de operar no contexto do mercado internacional da moeda em um momento de grandes incertezas, em razão da eleição de Trump. A moeda norte-americana não voltou ao pico de 6,24 reais de 30 de dezembro, e na quarta-feira 5 estava cotada a 5,80 reais, às 15 horas, com a perspectiva de um alívio na política tarifária dos Estados Unidos.
O chamado mercado manda como sempre, mas erra como nunca. Alguns levantamentos apontam falha em 95% das previsões econômicas e financeiras feitas nos últimos anos, no País e no resto do mundo. Organismos internacionais com corpos técnicos de excelência, caso do FMI, erraram sistematicamente, e por uma diferença muito grande, nas projeções de crescimento do PIB mundial e dos PIBs da Alemanha e da China, entre outros. Depois da pandemia, os erros tornaram-se ainda mais significativos.

Tática do medo. A cada sinal positivo na economia, o mercado aciona o modo “terrorismo” – Imagem: Cris Faga/NurPhoto/AFP
“Os mercados têm apostado, no Brasil, numa inflação como se fosse um problema de hiato de produto, de que o Brasil está crescendo aceleradamente, acima do Produto Potencial. E aí é que está o ‘xis’ da questão, porque, se a estimativa do Produto Potencial estiver errada, você vai dizer sempre que a inflação é um problema de crescimento. E que, portanto, você precisa desacelerar a economia. Quando, na verdade, o problema aqui, na minha visão, é de uma inflação de custos, com uma parte importante proveniente da cotação do dólar, e não de uma aceleração exagerada da economia”, destaca Ruas.
Qualquer crescimento acima de 3%, acrescente-se, mexe com os nervos do mercado, mas conter a economia nesse patamar significa, na prática, recusar uma expansão suficiente para possibilitar ao Brasil superar a condição de emergente e tornar-se um país de renda média. Todas as nações que se tornaram desenvolvidas, e ainda os emergentes bem-sucedidos, China e Coreia do Sul entre eles, cresceram entre 5% e 7% ao ano durante, no mínimo, meia década, mostra a história econômica.
O professor da Facamp sublinha o fato de que o preço do petróleo WTI (West Texas Intermediate), indicador de referência para o preço do óleo bruto nos Estados Unidos, hoje está em 65,5 dólares. Até a metade de 2024 oscilou em torno de 80 dólares. No início da guerra da Ucrânia, em 2022, chegou a 120 dólares. Quando o conflito terminar, o preço tende a se manter ou a ceder, mas não há queda do barril de petróleo que resista a uma desvalorização do dólar como aquela ocorrida em 2024, ressalta Ruas.
“Os preços internacionais, especialmente os de energia, tiveram um bom comportamento nos últimos 12 meses e devem continuar a cair. Isso se soma aos efeitos de uma safra muito boa, que deve entrar ainda no primeiro semestre e vai jogar os preços dos alimentos para baixo. Há um bom contexto para o segundo semestre”, destaca o professor da Facamp. “De qualquer forma, é muito complicado, o governo vai ter pouquíssima margem de manobra, em especial nos próximos dois meses. Tudo que ele tentar fazer para aquecer a demanda vai virar especulação em um momento em que o dólar ainda não encontrou um patamar para dar uma estabilizada, digamos. Enquanto não concluir a reforma ministerial, qualquer anúncio pode causar polêmica no mercado financeiro.” •
Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Gôndolas da esperança ‘