Golpe, armas e delírio

por José Manoel Ferreira Gonçalves

Quando a democracia esteve por um fio

O Brasil assistiu, entre 2022 e 2023, a uma das fases mais delicadas de sua vida republicana desde a redemocratização. Não se tratou apenas de polarização, radicalismo ou de redes sociais tóxicas. O país chegou perigosamente perto de um colapso institucional completo — e agora começam a surgir evidências diretas, em palavras claras, do que esteve em curso por trás das cortinas da legalidade.

Em um áudio de pouco mais de quatro minutos, vazado por um interlocutor identificado como Wladimir Matos, um ex-segurança que atuou nos bastidores do poder na transição de governo, o Brasil tomou ciência de um plano de ruptura com a Constituição. O conteúdo é estarrecedor: uma suposta equipe armada aguardava apenas a “canetada” do ex-presidente Jair Bolsonaro para agir. A missão? Defender o mandatário pela força, inclusive à custa de vidas. “A gente ia empurrar meio mundo de gente, pô, matar meio mundo de gente, tá nem aí já”, diz Matos sem o menor pudor.

“tomar tudo”

Esse não foi um plano de improviso, mas algo meticulosamente construído. Segundo o próprio áudio, a frustração se deu quando Bolsonaro “arregou” após ser traído por generais que, segundo a teoria conspiratória narrada por Matos, teriam sido “comprados pelo PT”. A frase completa — “a gente ia tomar tudo” — revela mais do que bravata. É o retrato do abismo do qual recuamos por centímetros.

O golpismo não era só retórico, como tantos quiseram acreditar. Era logístico, armado e, pelo que a mensagem revela, em vias de execução. Estavam “prontos para agir”. E o próprio autor do áudio lamenta o “pulso fraco” do ex-presidente, por não ir adiante. Esse tipo de mentalidade não é apenas perigosa. É abertamente terrorista.

Ódio, delírio e desinformação

Não bastasse o plano golpista frustrado, o discurso de Wladimir Matos ainda reserva espaço para devaneios paranoicos sobre o futuro. Fala de um golpe que seria dado por Alexandre de Moraes e Geraldo Alckmin contra Lula — ignorando completamente o funcionamento institucional do país e apostando em teorias sem base factual. A realidade é que, ao contrário do delírio paranoico bolsonarista, o Brasil continua sendo regido pela Constituição de 1988, e Lula foi eleito democraticamente, com chancela do TSE, observadores internacionais e respaldo da sociedade civil organizada.

A frase completa aparece novamente como retrato do plano fracassado: “a gente ia tomar tudo” ecoa o desejo de ignorar a soberania do voto popular. Nada mais antidemocrático.

Amazônia sob ataques ideológicos

Em meio ao caos golpista, Matos ainda destila ataques contra a política ambiental atual, chamando o ministro Marina Silva de “vagabunda” e prevendo a “venda total da Amazônia”. Ironia cruel. Sob Bolsonaro, o desmatamento na Amazônia bateu recordes sucessivos. Só em 2022, os alertas de desmatamento da área total da floresta amazônica foram os maiores da série histórica desde 2008. Em contraste, já no primeiro ano do governo Lula, 2023, o desmatamento caiu 22,3% segundo dados do INPE.

É um feito concreto, respaldado por satélites, fiscalizações retomadas e políticas ambientais robustas. Dizer que o novo governo pretende “destruir” a Amazônia revela mais sobre a cegueira ideológica dos radicais do que sobre a realidade dos fatos.

O retrato do extremismo que nos ronda

A mensagem de Wladimir Matos é um documento histórico, ainda que involuntário. Serve como prova do tipo de mentalidade autoritária e delirante que ronda os bastidores do bolsonarismo mais radical. Ali não há espaço para democracia, diálogo ou realidade. Há apenas ressentimento, planos armados e negacionismo.

Ignorar esse tipo de manifestação seria um erro. A tentativa de golpe não foi um ato isolado de vândalos em 8 de janeiro. Foi uma construção de meses — talvez anos — com apoio logístico, operacional e político. A mensagem vazada expõe a parte podre de um sistema paralelo que despreza a democracia, desrespeita a vida e idolatra um falso messias.

Que a sociedade brasileira, ainda com suas feridas abertas, não esqueça: “a gente ia tomar tudo” não é apenas uma frase. É uma ameaça real. E não há nada mais patriótico do que enfrentá-la com a força da lei, da Constituição e da memória.

José Manoel Ferreira Gonçalves – Engenheiro, advogado, jornalista e cientista político

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Last Update: 19/05/2025