Gilmar Mendes e a agonia expandida do Século das Luzes. Por Tarso Genro

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Foto: Reprodução

Por Tarso Genro, no site Democracia e Direitos Fundamentais

A decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, atualizando a interpretação da Lei 079/1950 e avaliando a sua eficácia – conceituada aqui como a capacidade de uma norma produzir seus efeitos jurídicos plenos –, revela toda a dramaticidade da nossa democracia constitucional, visivelmente assediada por um “golpe continuado”. Este, no fundo e na superfície, é o motivo político da crise entre os Poderes, que vai permear o processo eleitoral no próximo ano e pode se projetar para a próxima década.

A propósito da questão do “golpe continuado”, é claro que ele está numa fase ainda mais ofensiva, agora fixado na destruição da funcionalidade interna do Estado democrático, com o aniquilamento do orçamento público. Não é gratuita essa estratégia: o Orçamento Geral da União é norma de direito público sobre a qual deve repousar o funcionamento orgânico e coerente dos Poderes. Na sua desarmonia se aguçam as antinomias dentro da ordem, lembradas na sentença clássica de Norberto Bobbio, no seu “O Tempo da Memória”: “nos lugares onde o direito é impotente, a sociedade corre o risco de precipitar-se na anarquia; onde o poder não é controlado, corre o risco oposto, do despotismo.” A fórmula de Bobbio permite entender em profundidade a crise da democracia liberal que restou no Ocidente, freada na sua coerência democrática pela volta dos fascismos ao “menu” da História.

O Século das Luzes foi o Século XVIII, que expandiu sua iluminação e suas trevas, em todo o Ocidente, até o fim do Século XX. A expansão das suas luzes, todavia, decaiu por inteiro em todo o Ocidente, já formado por espaços geopolíticos informes, dentro dos quais o Brasil luta para sobreviver com uma ousada dignidade liberal-democrática, adotando o repto de menos desigualdade e mais democracia. Na resposta, todavia, às perguntas “quem ataca a democracia?” e “quem defende o Estado de Direito?”, desde sempre — neste quadro histórico da democracia liberal — está a chave do entendimento dos problemas jurídicos e políticos que debilitam a nossa democracia constitucional.

A tentativa de golpe debelada pelo STF, no espinhoso janeiro do primeiro ano do Governo Lula III, dá sinais claros de que o golpe continua em curso, e a resistência ao desatino golpista — novamente patrocinada pela Suprema Corte — introduz na crise um novo parâmetro. É uma crise original (no que se refere ao principal espaço da sua difusão), que não é mais predominantemente a economia, mas o espaço da superestrutura jurídica e política, onde estão sendo construídas as maiorias parlamentares nas eleições de 26.

Dois anos do 8 de janeiro: a fragilidade da democracia e o papel das elites na disseminação da desinformação - Sintietfal
Bolsonaristas durante o ataque golpista de 8 de janeiro de 2023 em Brasília. Foto: Reprodução

Para compreender a natureza de uma crise — seja ela eminentemente política ou motivada por situações socioeconômicas mais amplas — é preciso verificar (primeiro) se os processos utilizados pela oposição que disputa o poder estão sendo lícitos ou ilícitos para, a partir daí (segundo), localizar os focos que podem avançar sobre o corpo institucional do Estado e gerar não só dificuldades para a aplicação das leis, mas também para verificar os interesses lícitos e ilícitos que a contaminam.

Nesta semana encerrada em 7 de dezembro, três fatos históricos aparentemente desligados entre si ajudam a revelar os motivos da ofensiva da extrema direita e do fisiologismo oligárquico contra o governo legítimo que governa o país. Tal ofensiva usa o controle e a destruição do orçamento público como método ilegítimo de enfrentamento político, para que o governo legítimo não possa governar e fique encurralado como um governo que administra o caos. Ora, um Estado de Direito que não reaja contra a sua destruição não merece sobreviver: eis o que compreendeu o STF na tentativa de golpe de janeiro e o que compreendeu agora, novamente.

Revelou o jornal Valor, no início da semana, que “a desigualdade de renda recuou para o menor nível da história”; a CNN Brasil noticiou que “Lula e Trump conversaram por telefone por 40 minutos”, para reajustar o comércio bilateral de forma coordenada — segundo o princípio do mútuo interesse comercial entre nações soberanas —, quadros que são resultado das ações governamentais de Estado, no interior e no exterior, comandadas pelo Poder Executivo.

Na outra ponta, a do Legislativo, aparelhado pelo fisiologismo oligárquico regional e pela extrema direita cúmplice do crime organizado, vem a reação: as emendas de valores gigantescos, com prazos obrigatórios e pagamentos programados que, somadas ao “orçamento secreto”, destroem a mínima coerência técnica e financeira do Orçamento Geral da União. A combinação dessas ilegalidades com as ameaças de “impeachment” contra ministros do Supremo dará continuidade a uma perversão orçamentária radical, de um lado, e, de outro, à desconstrução da Suprema Corte como centro de resistência ao golpe continuado.

Os juristas mais tradicionais — que normalmente são alheios à verificação do conteúdo material das normas a serem interpretadas e mesmo se elas estão de acordo com o Preâmbulo da Constituição (e com os demais comandos compulsórios do seu ordenamento) — sabem, mas fazem que não sabem, que o sentido básico que dá legitimidade à democracia constitucional é o seu dever de compor mecanismos para obstar a destruição do funcionamento harmônico e estável dos Poderes.

Como salienta o ministro Gilmar Mendes na sua decisão histórica sobre o tema, “a tentativa de captura da Corte, seja por meio do court packing – por exemplo, por meio do aumento do número de membros do Tribunal – ou pela coação de seus membros – é uma das principais ferramentas para garantir que as modificações implementadas na ordem jurídica não sejam obstadas por um Poder Judiciário independente e fiel à Constituição.” (ADPF 1259 MC/DF).

Trata-se de verificar qual a teleologia, a finalística — o sentido da interpretação de uma norma — que pode sedimentar o caminho do golpismo continuado ou brecá-lo, já que o golpismo continuado, com a distribuição clandestina de recursos orçamentários, pode se ampliar no âmbito das duas Casas do Congresso. Essa possibilidade de ampliação pode proliferar tanto no curso de uma ofensiva contra o STF, que tenha como objetivo bloquear as competências magnas do Supremo, como com aquela violência que esteve presente nos episódios de 8 de janeiro.

O organismo do Estado, a facção política ou simplesmente criminosa que se empoderar do direito de alterar maiorias e minorias no Supremo, debilitando a sua função de guardião da Constituição, chancelará a diluição do Estado Democrático de Direito. Assim, poderá reescrever — num “estado de fato” — o Preâmbulo da Constituição com um outro sentido, aqui metaforicamente sugerido: “esta Constituição autoriza que as minorias fascistas e de extrema direita, com a ajuda das oligarquias regionais — inclusive as vinculadas ao crime organizado — possam alterar a composição do STF para, a partir do Congresso, impor um regime político fundado num parlamentarismo pervertido.”

É evidente que o buscado por parte do ministro Gilmar Mendes e do STF não é criar novas leis através do Poder Judiciário, mas simplesmente interpretar leis “caducas” e verificar se uma lei determinada ainda detém eficácia normativa para cumprir as suas finalidades originárias. Tudo para concluir se as leis produzidas em outros contextos podem ser eficazes nestes novos tempos de indignidade geral do Parlamento, que vive uma época em que maiorias ou minorias parlamentares cometem crimes, fogem do país, não perdem seus mandatos, mas podem promover simulacros de “impeachment” legais, dignos de uma “vendetta mafiosa”.

Voltando a Bobbio, de “A Era dos Direitos”: “Kant dizia que recair no pior não pode ser um estado constantemente duradouro na espécie humana, porque em um determinado grau de regressão ela destruiria a si mesma. Mas é exatamente a imagem dessa corrida para a autodestruição que aflora nas visões catastróficas de hoje.”

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