‘Gigantes da tecnologia podem causar muitos danos sem regulamentação’, diz pesquisadora sul-africana
Ao ‘Estadão’, Noluthando Jokazi defende que plataformas como Facebook e Google façam acordos com jornais e sites de notícias
Plataformas como Facebook, X e TikTok, além de funcionarem como redes de conexão de pessoas são também canais onde os usuários buscam informações sobre o que acontece no mundo e ao seu redor. Mas o uso de notícias por essas empresas tem feito com que sites, jornais e portais percam tráfego de acessos, impactando sua receita, enquanto as gigantes de tecnologia usam o conteúdo para engajar usuários e treinar bancos de dados de IA.
Claro, é uma visão contestada por nomes como o Google, que afirma que continua direcionando audiência para os veículos. Mas nem sempre é uma perspectiva que encontra ecos na realidade.
Na África do Sul, por exemplo, jornais locais perderam cerca de 40% da receita tanto em emissoras comerciais quanto públicas nos últimos 5 a 10 anos.
O dado é revelado por uma pesquisa liderada por Noluthando Jokazi, pesquisadora do cenário regulatório sobre IA e responsável pelo relatório Media and Digital Platforms Market Inquiry (MDPMI) Provisional Report, de fevereiro de 2025.
De acordo com Noluthando, grandes empresas de tecnologia, como Google, Meta e X, usam o conteúdo de sites e jornais em vez de direcionar o usuário para os veículos — na Austrália, Google e Meta tiveram que pagar veículos locais para usar matérias publicadas por eles depois que uma lei em defesa da mídia foi aprovada.
Já no Canadá, a companhia de Mark Zuckerberg preferiu remover os veículos locais de suas plataformas, com resultados negativos para as empresas.
“Descobrimos que a conduta de certas plataformas de redes sociais exacerbou o desafio e prejudicou a mídia ao usar conteúdo de notícias para manter os consumidores engajados em suas plataformas, em vez de direcionar tráfego para os sites da mídia na web”, afirmou Noluthando em entrevista ao Estadão.
A pesquisadora, que passou pelo Brasil nesta semana para participar de um evento sobre o impacto das Big Techs no jornalismo, o Ctrl+J, da AJOR, ainda afirma que a regulamentação dessas plataformas é essencial em diferentes países, mesmo que as redes sejam de origem americana. Para ela, é preciso um trabalho coordenado para que a operação e as regras de ambas as partes possam funcionar para o usuário final.
Leia os melhores momentos da entrevista:
Sua pesquisa é sobre o impacto das grandes empresas de tecnologia na mídia. O que a sra. descobriu sobre as ações dessas empresas nas redes sociais?
Essa é obviamente uma conversa global muito importante que está acontecendo em várias jurisdições e também afeta a mídia sul-africana. Isso vem da mudança no consumo de notícias para plataformas digitais. Estamos descobrindo que a mídia de notícias agora é capaz de gerar receita e se sustentar nessa mudança no consumo de notícias para redes sociais ou plataformas digitais.
Descobrimos que a conduta de certas plataformas de redes sociais exacerbou o desafio e prejudicou a mídia ao usar conteúdo de notícias para manter os consumidores engajados em suas plataformas, em vez de direcionar tráfego para os sites da mídia na web.
Sabemos que os dados são importantes para a consolidação de receita de publicidade. Então, as plataformas guardam esses dados para si e assim a mídia não consegue usar esses dados para consolidar a receita de publicidade.
Muitos países parecem ter problemas com a relação entre redes sociais e a circulação de notícias. Como a sra. acha que essa questão se aplica mundialmente?
Em algumas das descobertas que estão em nosso relatório, vemos que o Facebook, por exemplo, suprimiu links de notícias em seu site ou em sua plataforma, impedindo que os leitores cliquem no link da notícia e gerem tráfego de referência para o próprio site. E redes sociais como Facebook, X ou TikTok usam conteúdo de mídia para manter os usuários engajados na plataforma.
Fizemos muitas pesquisas que mostraram que os jovens estão recebendo suas notícias no TikTok. Mas também estamos vendo que muitas pessoas entram nas redes sociais e leem pequenos trechos de notícias por lá.
Portanto, não há necessidade de um usuário acessar o site real da empresa de mídia ou o site da publicação. Eles podem simplesmente usar essas informações ou usar esse conteúdo de mídia de notícias para manter as pessoas engajadas na plataforma. Então, eles não canalizam esse engajamento do usuário para os próprios sites. Muitas empresas de mídia estão perdendo receita de publicidade por causa disso.
Como isso poderia ser resolvido?
A Meta deveria restaurar os links de visibilidade no site, para que isso possa direcionar tráfego para os sites de mídia. Também vimos que o Google favorece a mídia estrangeira em sua página de busca em detrimento do conteúdo local, no caso da África do Sul. Estamos pedindo ao Google para mudar seu comportamento e como as notícias são mostradas na página de busca.
Além desse tipo de compensação, outras jurisdições tentaram lidar com essa questão. Na Austrália, por exemplo, eles criaram um tipo de negociação para que as publicações de notícias se juntassem e negociassem seus dados e o treinamento de dados de chatbots. Podemos trabalhar juntos para compartilhar informações, descobertas e quais são as questões e desafios que enfrentamos ao tentar regular grandes empresas e negociar esses tipos de acordos.
A sra. acredita que esse movimento só será possível a partir de processos por parte da mídia? As gigantes de tecnologia tendem a sugerir soluções voluntariamente?
Em nossa avaliação, quando analisamos o tipo de vantagem que o Google obtém das notícias, descobrimos que as buscas do Google por consultas de notícias equivalem a cerca de 10% a 15%.
Pudemos ver que o Google foi capaz de ganhar entre US$ 600 milhões a US$ 900 milhões com as notícias. Também vemos que cabe às próprias publicações de notícias ou aos próprios veículos de notícias iniciar esse processo, antes de esperar que as plataformas digitais os abordem.
Eu realmente duvido que eles abordarão os veículos. Deve haver proatividade e isso também evita qualquer viés ou qualquer injustiça que venha com plataformas digitais abordando os próprios veículos de notícias.
Qual é a importância da regulamentação para gigantes de tecnologia? Como isso poderia ser feito?
Acho que, especialmente a regulamentação da concorrência, é importante para promover mercados abertos e justos. É um ato de equilíbrio entre regulamentação e inovação para que não sejam exageradas e não sufoquem o investimento e a inovação em um país específico. É importante harmonizarmos a regulamentação em cada país.
É difícil para um país regular uma empresa de tecnologia global. Você obviamente terá brechas, consequências não intencionais e muita supervisão. Então, é bom que haja um esforço colaborativo de regulamentação em todo o mundo.
Mas também, o que vemos é que se não houver regulamentação proativa em um país específico, haverá muitos danos causados por grandes empresas de tecnologia. Tomamos emprestada algumas regras do DMA (Digital Marketing Act, da União Europeia) que impedirão a anticompetitividade, como a auto preferência, a limitação da interoperabilidade entre lojas de aplicativos ou entre plataformas de redes sociais e a redução na escolha do consumidor.
O Digital Market Act tem sido um grande exemplo para os países sobre o que seguir ou como regular não só ações anticompetitivas mas também inteligência artificial (IA), certo?
Sim. A IA é um setor em rápido crescimento e está transformando completamente cada indústria a uma taxa sem precedentes, na saúde, nas finanças, no transporte. Plataformas digitais e IA têm um poder altamente concentrado sobre algumas empresas de tecnologia e isso, com o tempo, pode causar danos.
O DMA foi importante porque foi uma legislação proativa que pode ajudar com alguns desses danos que podem ser evitados no futuro. Acho que a regulação, como eu disse, deveria ser sobre não exagerar, sobre proteger os consumidores e proteger as pequenas indústrias e os pequenos players.
Então sim, acho que a regulamentação é importante, mas também é importante dar um passo para trás como regulador e ver como a indústria vai crescer, especialmente com esses mercados emergentes de IA e as ferramentas de IA que estão mudando o tempo todo.