A minha mãe, que acaba de morrer
No dia em que o maior presidente da nossa história se matou, em 24 de agosto de 1954, há 70 anos, eu estava exatamente dentro da barriga da minha mãe, que enfrentava uma gravidez difícil, com risco de perda da criança. Acamada, ela foi terminantemente proibida de se levantar.
Porém, ao ouvir a notícia do suicídio do presidente da República, ela pulou da cama e saiu gritando pela casa: “Getúlio se matou!”. Por pouco, não fui desta para melhor (o que talvez não fosse mal, uma vez que, como escreveu Heine, “o sono é bom, a morte melhor, melhor mesmo seria nunca ter nascido”.)
Dominada por getulistas, a família da minha mãe, os Pinheiros de Minas Gerais, ficou desolada, assim como a grande maioria do povo brasileiro. A morte de Getúlio desencadeou comoção popular sem precedentes e adiou por dez anos o golpe que militares e civis reacionários e entreguistas tramavam para derrubá-lo. Essa comoção é uma das muitas provas de que ele foi, de fato, o maior presidente da história do Brasil.
Os lulistas que me perdoem, mas o atual presidente seria um segundo lugar, no meu modesto entender, à frente de dois outros grandes presidentes que governaram o Brasil por menos tempo: Juscelino Kubitschek (1956-1961) e Ernesto Geisel (1974-1979), ambos por mandato de cinco anos.
Lula já governou quase dez anos e, se reeleito em 2026, como esperamos que seja, terá completado 16 anos na Presidência ao final do seu quarto governo. Getúlio permanece, entretanto, o presidente mais longevo da história, com 19 anos no cargo (1930-1945 e 1951-1954).
Não é por duração no cargo, evidentemente, que Getúlio deve ser considerado o maior presidente de todos os tempos. O que importa é a sua extraordinária quantidade de grandes feitos, que deixaram marcas indeléveis.
Antes de enumerá-los, faço duas rápidas digressões. Primeira: ninguém pode negar que Lula é um gigante, talvez hoje um dos principais líderes do planeta. Realizou muito nos seus dois primeiros mandatos, sobretudo no segundo. Resistiu heroicamente a uma perseguição implacável.
Procura agora realizar mais ainda, defrontando-se, porém, com a pesadíssima herança recebida de Jair Bolsonaro e com a sabotagem permanente da turma da bufunfa. Lula se destaca entre todos os presidentes, pelo que fez e está fazendo em termos de combate à pobreza e distribuição de renda. Pode ser considerado um sucessor de Getúlio, em que pese certa ambivalência dele e do PT em relação à era Vargas.
Segunda rápida digressão: os quatro presidentes mencionados têm pelo menos um ponto em comum: lideraram governos marcados pela combinação de desenvolvimento com nacionalismo e suscitaram a hostilidade dos setores mais conservadores da sociedade brasileira.
Isso vale principalmente para os presidentes civis, mas até Geisel teve que enfrentar a insubordinação do general Ednardo D’Avila, comandante do Segundo Exército em São Paulo, antro de tortura e assassinatos políticos. Teve, também que abortar uma tentativa de golpe comandada por seu ministro do Exército, Sílvio Frota, líder da linha dura.
Foi o que permitiu a continuação da “distensão política lenta, segura e gradual” iniciada por Geisel e que daria fim à ditadura militar no início da década de 1980. Um parêntese: a inclusão de Geisel entre os mais importantes presidentes pode causar estranheza; prometo explicar melhor em outra ocasião.
Realizações econômicas e sociais do Getúlio
Lula e Juscelino são presidentes democráticos, eleitos pelo voto direto. Getúlio só o foi na sua segunda fase como presidente, quando voltou ao poder por eleição direta com uma vitória estrondosa em 1950.
Mesmo assim, qualquer um sofre na comparação com Getúlio. Não sei se os brasileiros, mesmo os que tiveram a oportunidade de se educar, fazem uma ideia, ainda que remota, do que foram os seus governos. A lista de realizações é longa, vou procurar resumi-las, sem a pretensão de mencionar sequer todas as principais.
No campo econômico, Getúlio reagiu à Grande Depressão dos anos 1930 com uma política de intervenção econômica e defesa do preço do café, então nosso principal produto de exportação, o que permitiu suavizar e abreviar o impacto da crise internacional sobre a economia brasileira. Praticou o que Celso Furtado denominou de “keynesianismo antes de Keynes”.
Em consequência, a economia brasileira se recuperou antes da maioria das demais. Já a Argentina, apegada ao grande sucesso da sua economia primário-exportadora até 1929, adotou uma linha econômica liberal e experimentou uma crise muito mais severa.
Enquanto a Argentina naufragava, o Brasil de Getúlio deu partida à fase mais intensa de industrialização brasileira, com o centro dinâmico da economia se deslocando do setor agroexportador para o mercado interno, como destacou Furtado.
Em 1941, Getúlio cria a Companhia Siderúrgica Nacional, explorando a rivalidade entre o Terceiro Reich e os Estados Unidos, e conseguindo assim o apoio americano para o estabelecimento da empresa. Em 1942, ele cria a Vale do Rio Doce, cujo primeiro presidente foi Israel Pinheiro, meu tio-avô e avô do economista André Lara Resende. No seu segundo mandato, em 1952, Getúlio cria o BNDE (hoje BNDES). E a Petrobrás em 1953, sob forte resistência do capital estrangeiro e seus aliados domésticos. Só não conseguiu criar a Eletrobrás, que surgiria em 1961 com JK.
Boa parte das empresas estatais estratégicas para o desenvolvimento do Brasil remonta, portanto, à Era Vargas. Não por acaso, coube ao presidente Fernando Henrique Cardoso, neoliberal e entreguista, líder da “privataria”, anunciar pretensiosamente que poria “fim à Era Vargas”.
O que FHC pôs no lugar estamos procurando até hoje. O que houve nos governos dele foi um processo acelerado e mal conduzido de privatização, de 1995 em diante, que desaguaria nas privatizações infames de Paulo Guedes no governo Bolsonaro.
Mas não foi só no terreno econômico que Getúlio trouxe mudanças fundamentais. Foi ele que instituiu as leis trabalhistas, em 1934, prevendo direitos para os trabalhadores, como salário mínimo, jornada de oito horas, férias remuneradas e liberdade sindical.
Foi no seu governo que se estabeleceu o voto da mulher, em 1932, realizando antiga reivindicação das lideranças femininas. Não por acaso, Getúlio volta em 1951 à Presidência “nos braços do povo”, como ele diria na sua carta-testamento três anos depois. Não por acaso, as suas políticas suscitaram intensa hostilidade de grande parte, provavelmente da maior parte da retrógrada e predatória elite brasileira.