Geopolítica, extrema direita e a crise da ordem internacional
por Maria Luiza Falcão
O ano de 2025 se encerra sem síntese e sem alívio. Não há resoluções, apenas adiamentos; não há estabilidade, apenas contenção provisória do caos. O mundo chega ao fim do ano em estado de suspensão permanente, marcado por conflitos não resolvidos, instituições enfraquecidas e uma reorganização profunda e perigosa do poder global. A ilusão de normalidade é mantida à custa de exceções contínuas. O sistema internacional já não funciona como ordem: funciona como improvisação.
A ascensão da direita e a corrosão deliberada da democracia
O avanço das direitas radicais e autoritárias consolida-se como um dos traços mais inquietantes de 2025. Trata-se de um fenômeno global, com variações nacionais, mas com um núcleo comum: desprezo pelas instituições democráticas, ataque sistemático à imprensa, às universidades e à ciência, criminalização de minorias e recusa explícita do pluralismo político.
Na América do Sul, esse movimento assume contornos particularmente regressivos. A experiência argentina sob Javier Milei, o avanço da extrema direita no Chile, a persistência do bolsonarismo no Brasil e a instabilidade política crônica em outros países da região revelam uma direita que já não busca governar dentro da democracia liberal, mas tensioná-la até seus limites. Explora frustrações reais — estagnação, insegurança, desigualdade —, mas oferece como resposta o autoritarismo, o desmonte do Estado e a submissão irrestrita ao mercado financeiro.
Não há projeto nacional nem estratégia de desenvolvimento.
Conflitos administrados, violência normalizada
Os grandes conflitos de 2025 não caminham para a paz; caminham para a normalização. A guerra na Ucrânia permanece num impasse destrutivo, sustentado por cálculos geopolíticos que já pouco dialogam com qualquer horizonte de reconstrução. O Oriente Médio segue em combustão lenta, com crises humanitárias recorrentes, direito internacional seletivo e a banalização da morte civil de populações inteiras.
O traço comum é claro: os conflitos não são resolvidos porque resolvê-los exigiria mediação, instituições eficazes e compromisso político internacional — exatamente o que falta. A guerra torna-se administrável, e o sofrimento, estatística.
Estados Unidos sob Trump: poder sem liderança
O retorno de Donald Trump à Casa Branca acelera o declínio qualitativo da hegemonia norte-americana. Os Estados Unidos seguem sendo uma potência central, mas já não exercem liderança estabilizadora. O unilateralismo, o desprezo por alianças históricas, o ataque a organismos multilaterais e a instrumentalização da política externa para consumo doméstico corroem a credibilidade do país.
A doutrina “America First”, agora mais agressiva, produz um efeito paradoxal: ao tentar reafirmar poder, Washington enfraquece as bases da ordem que sustentou sua própria centralidade desde 1945. O resultado é um mundo mais inseguro, mais fragmentado e menos disposto a seguir qualquer liderança vinda de um país que já não respeita as regras que criou.
Europa: relevância sem direção
A Europa encerra 2025 politicamente frágil e estrategicamente desnorteada. Pressionada por baixo crescimento, conflitos sociais, crise migratória e avanço da extrema direita, a União Europeia revela dificuldades crescentes para agir como ator geopolítico autônomo.
A dependência militar, a hesitação diplomática e a incapacidade de formular respostas coordenadas aos desafios tecnológicos e produtivos expõem um continente que reage aos acontecimentos, mas já não os molda. A Europa permanece relevante, mas seu peso político não acompanha sua memória histórica.
China: estabilidade como ativo geopolítico
Em contraste com a instabilidade ocidental, a China encerra 2025 avançando de forma silenciosa, planejada e estratégica. O fortalecimento do mercado interno, o investimento contínuo em inovação, a reorganização das cadeias produtivas e a ampliação de sua presença diplomática no Sul Global consolidam sua posição como pilar central da nova configuração internacional.
A China não se apresenta como salvadora da ordem global, mas como potência previsível num mundo imprevisível. Em um sistema internacional marcado por improviso, a capacidade de planejar se tornou poder.
O colapso funcional das instituições multilaterais
Talvez o sinal mais grave do encerramento de 2025 seja o esvaziamento prático das instituições multilaterais. A Organização das Nações Unidas mostra-se incapaz de conter conflitos ou impor o direito internacional de forma consistente. O Conselho de Segurança opera paralisado, refém de vetos e seletividades políticas.
O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial seguem ativos, mas cada vez mais distantes das necessidades reais do desenvolvimento, presos a condicionalidades que perderam legitimidade e eficácia. A Organização Mundial do Comércio permanece praticamente imobilizada, incapaz de arbitrar disputas num mundo em que o comércio foi capturado pela lógica da segurança nacional.
Essas instituições não colapsaram formalmente, mas funcionam abaixo do limiar histórico para o qual foram criadas. O multilateralismo sobrevive mais como retórica do que como instrumento real de governança.
Um mundo multipolar sem árbitro — e sem consenso
O saldo de 2025 é inequívoco: o mundo tornou-se multipolar, mas sem mecanismos de coordenação compatíveis com essa realidade. A hegemonia norte-americana enfraquece sem ser substituída; a Europa hesita; a China avança; potências regionais testam limites; e a extrema direita ocupa o vazio político deixado pela crise do liberalismo.
Nesse contexto, a democracia deixa de ser um terreno minimamente compartilhado e passa a ser objeto de disputa aberta. Já não há acordo básico sobre regras do jogo, limites institucionais ou sobre o papel do Estado na mediação de conflitos sociais. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento deixa de ser tratado como um problema técnico, resolvível por ajustes macroeconômicos ou fórmulas padronizadas, e volta a ser uma questão eminentemente política. Decidir como crescer, quem se beneficia do crescimento e quais custos sociais e ambientais são aceitáveis implica escolhas de poder, interesses e valores. É exatamente nesse terreno — o da decisão política sobre o futuro — que se reorganizam as tensões centrais do mundo contemporâneo.
América Latina e Brasil: entre a regressão autoritária e a disputa pelo futuro
Para a América Latina, o encerramento de 2025 não é apenas o retrato de um mundo em crise; é um teste histórico. A região volta a ser pressionada a escolher entre dois caminhos conhecidos: submeter-se novamente a projetos regressivos, financeirizados e autoritários, ou disputar um novo ciclo de desenvolvimento soberano, democrático e socialmente orientado.
A direita latino-americana apresenta-se como “antissistema”, mas governa para o sistema mais concentrador e excludente que existe: o do rentismo financeiro, da desindustrialização e da destruição do Estado. Onde chega ao poder, desmonta políticas sociais, entrega patrimônio público e criminaliza a política. Não oferece crescimento sustentável nem inclusão. Oferece ajuste permanente e conflito social.
Na verdade, não há neutralidade possível. A América Latina não fracassou por excesso de Estado, direitos ou democracia. Fracassou sempre que renunciou a planejamento, política industrial, soberania financeira e integração regional. Fracassou quando aceitou que desenvolvimento fosse sinônimo de exportar commodities e remunerar capitais voláteis. Fracassou quando naturalizou a desigualdade.
O Brasil ocupa posição estratégica nessa encruzilhada. Ou lidera um projeto de reconstrução produtiva, social e ambiental, ou será arrastado para a periferia ampliada de um mundo fragmentado. Democracia sem desenvolvimento é frágil; desenvolvimento sem democracia é regressão. A extrema direita avança exatamente onde o Estado se ausenta e onde a política abdica de disputar o sentido do progresso.
Encerrar 2025 não é um exercício de retrospectiva neutra. É reconhecer que o sistema internacional entrou em uma fase de transição prolongada, marcada por instabilidade estrutural, competição entre projetos e enfraquecimento deliberado das regras que organizaram o mundo no pós-guerra. A fragmentação da ordem global, o esvaziamento das instituições multilaterais e a ascensão de forças autoritárias não são fenômenos desconectados: são partes de um mesmo processo de reorganização do poder em escala mundial.
Para a América Latina, essa conjuntura impõe escolhas difíceis e inadiáveis. A região volta a ser pressionada a aceitar um lugar subordinado na economia global, baseado na reprimarização produtiva, na financeirização e na contenção permanente de direitos sociais. A experiência recente demonstra que esse caminho não produz estabilidade, nem crescimento sustentado, nem coesão social. Produz desigualdade, vulnerabilidade externa e ciclos recorrentes de crise política.
O Brasil ocupa posição central nessa encruzilhada. Pela dimensão de sua economia, pela complexidade de sua estrutura produtiva e por seu papel no Sul Global, o país não pode limitar-se a administrar desequilíbrios. A defesa da democracia, neste contexto, não se resume à preservação de procedimentos eleitorais, mas exige capacidade efetiva de formular projetos nacionais de desenvolvimento, reduzir desigualdades, gerar emprego e reconstruir a confiança social. Sem isso, a democracia torna-se frágil e exposta ao avanço de soluções autoritárias.
Do ponto de vista da economia política, não há espaço para ilusões tecnocráticas. Desenvolvimento não é resultado automático de mercados desregulados nem de ajustes fiscais permanentes. É produto de escolhas políticas, de planejamento, de coordenação entre Estado e sociedade e de um projeto nacional capaz de articular crescimento econômico, inclusão social e sustentabilidade ambiental.
O mundo que emerge após 2025 será mais competitivo, menos tolerante a improvisações e menos generoso com países que abdicarem de sua capacidade de decisão. Para o Brasil e para a América Latina, soberania, desenvolvimento e democracia deixam de ser categorias abstratas e passam a definir a própria possibilidade de futuro. Não se trata de retórica, mas de sobrevivência histórica em um sistema internacional cada vez mais instável e desigual.
Maria Luiza Falcão Silva – MSc em Economia (University of Wisconsin–Madison), PhD (Heriot-Watt University), Professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB), membro da ABED e do Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC/NEASIA).
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