Mês da Consciência Negra, o novembro que passou foi marcado por dois casos de grande repercussão: cinco anos após a morte de Ágatha Félix, o policial militar Rodrigo José de Matos Soares, apontado como o autor do disparo de fuzil que matou a menina de 8 anos no Rio de Janeiro, foi absolvido pela Justiça. Na mesma semana do julgamento, Beatriz da Silva Rosa, cozinheira escolar, perdeu o filho mais novo, Ryan da Silva Andrade Santos, de apenas 4 anos, durante uma ação policial em Santos, no litoral paulista. Ryan faleceu dez meses depois de seu pai, Leonel Andrade Santos, ser fuzilado, juntamente com o amigo Jefferson­ Ramos Miranda, durante a Operação Verão, que resultou em mais de 56 mortes na Baixada Santista.

As mortes de crianças periféricas comovem, mas a revolta parece não ser suficiente para provocar mudanças concretas, mesmo diante da extensa mobilização acadêmica e social que denuncia, há décadas, que tais casos não são isolados. Recém-lançado pela Editora Elefante, meu livro Gramática Negra da Violência de Estado aborda esse tema. Nele, revelo como, nos últimos 50 anos, o movimento negro moldou sua denúncia até chegar à palavra “genocídio”. Identifico uma evolução no entendimento do problema racial no Brasil, no qual a crítica à violência se radicalizou.

Inicialmente, o movimento negro interpretava a violência policial como um ato de discriminação racial, associado a fatores sociais e econômicos. Passamos por um novo período, em que a violência passa a ser reconhecida como de cunho racial, em que a brutalidade policial é um ato articulado para ocorrer a partir de um ­viés racializado. Quando chegamos ao genocídio, não é apenas um ato de violência. É um posicionamento do Estado, a assumir a condição de conflito contra a população.

Ao traçar uma linha do tempo da denúncia do movimento negro ao longo das décadas, conseguimos compreender por que o assassinato político de ­Marielle Franco não passou despercebido pela sociedade, incluindo suas dimensões de raça e gênero. Esse caso, uma brutalidade contra uma mulher negra e periférica, refletiu uma percepção já consolidada de que um genocídio negro está em curso.

Por outro lado, esse momento foi fundamental para resgatar a memória das ruas, da militância que tensiona o Estado e gera conhecimento que nos ajuda a compreender melhor os processos políticos das instituições. No projeto Afro Memória, iniciado durante minha pesquisa de doutorado, os acervos pessoais de militantes são enviados à universidade pública, por meio de parceria com o Arquivo Edgard Leuenroth­ da Unicamp. Essa iniciativa legitima o conhecimento produzido fora dos muros acadêmicos, ao mesmo tempo que permite à sociedade acessar sua memória.

Além disso, organizar essa memória também nos ajuda a reconstruir a política de morte do Estado brasileiro contra a população negra. Ao longo das décadas, a violência intensificou-se, enquanto persistem a ausência de soluções estruturais e o abandono de um debate sério sobre a transformação da segurança pública. Atualmente, pessoas negras têm 3,8 vezes mais chances de morrer em intervenções policiais do que indivíduos brancos no Brasil, segundo o Anuário ­Brasileiro de Segurança Pública de 2024.

Nem mesmo o luto das mães, a produção científica qualificada e a maior repercussão das denúncias têm sido suficientes para provocar mudanças

Outro dado alarmante: a taxa de homicídios por armas de fogo foi de 44,7 por 100 mil habitantes entre homens pretos e pardos, enquanto esse número é de 14,7 para o restante da população masculina, revela um levantamento do Instituto Sou da Paz. Em 2023, uma pessoa negra foi morta a cada quatro horas em intervenções policiais registradas em nove estados do Brasil, segundo a Rede de Observatórios da Segurança.

Novembro chegou ao fim, a morte de Ryan completou um mês. Em dezembro, no dia 10, celebramos os 76 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e somos tomados pela retrospectiva do ano. Como diz a canção: Então é Natal, o que ­você fez? Ao refletirmos sobre o ano que passou, temos a certeza da urgência e necessidade de democratizar o debate sobre segurança pública no Brasil, por meio da participação ativa dos movimentos sociais nos conselhos e de um maior engajamento dos parlamentares progressistas nesta agenda. O protagonismo não pode continuar nas mãos da Bancada da Bala. Falhamos, mais uma vez, em não encontrar um caminho sólido para enfrentar uma política já institucionalizada de morte contra a população negra e periférica. •


*Paulo César Ramos é doutor em Sociologia pela USP, mestre e bacharel em Sociologia pela UFSCar, com pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia, nos EUA. Também é coordenador de pesquisa do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e coordenador do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo. Tem se dedicado ao estudo das relações raciais, violência, memória, movimentos sociais e políticas públicas. É autor do livro Contrariando a Estatística: Genocídio, Juventude Negra e Participação Política (Alameda, 2021), e do livro Gramática Negra da Violência de Estado (Elefante, 2024).

Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital, em 11 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Genocídio negro’

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Last Update: 05/12/2024