No último sábado (26), o jornal O Estado de S. Paulo publicou o artigo “Autoritarismo e meio digital são riscos à liberdade de expressão no mundo, dizem especialistas”. A peça centra fogo nas recentes medidas de perseguição política levadas a cabo pelo presidente dos EUA Donald Trump.
A crise gerada pela política genocida do governo israelense, patrocinado pelos EUA, tem levado a uma situação de radicalização política no país norte-americano. Nesse cenário, os estudantes universitários estão protagonizando o movimento de solidariedade ao povo palestino. Sob a fachada do combate ao antissemitismo, o governo dos EUA deslanchou uma operação para reprimir a campanha da Palestina nas universidades e, em particular, no movimento estudantil, com detenções e revogação de vistos de estudantes imigrantes ou bolsistas estrangeiros.
Apesar disso, o Estado aponta, através de declarações de especialistas, que o maior inimigo da liberdade de expressão hoje, no mundo, não sejam os aparatos estatais, do Executivo e do Judiciário, mas a internet.
“‘O maior risco, no entanto, vem do poderio descomunal e desproporcional concentrado nas chamadas big techs, que podem direcionar o debate público por meio de algoritmos e sistemas inteligentes, impulsionando certas mensagens e obscurecendo outras. Nesse novo fenômeno está o maior dos riscos vividos pela liberdade de expressão nos nossos dias’, diz Bucci, em referências a companhias como Meta (dona de Facebook, Instagram e WhatsApp), Alphabet (Google e YouTube), e X (antigo Twitter), por exemplo.
Bucci se refere ao fato de algoritmos serem projetados para maximizar o engajamento dos usuários, privilegiando conteúdos que despertam emoções intensas, como raiva ou indignação. Além disso, tendem a expor os usuários a informações que reforçam suas convicções prévias, criando as chamadas bolhas digitais, que reduzem o contato com perspectivas divergentes.
A lógica por trás desse mecanismo é financeira, como já mostrou o Estadão. Quanto mais engajado o usuário, maior o tempo de permanência na plataforma e maior a receita publicitária gerada. O impacto social, no entanto, é severo. As bolhas digitais aprofundam divisões e reduzem a tolerância ao diferente.”
E, no entanto, como revelado pelo CEO da META, Mark Zuckerberg, em participação no podcast The Joe Rogan Experience em janeiro deste ano, a intensificação da censura, o impulso para a retirada de conteúdos da plataforma, a busca ativa por influir de maneira assertiva sobre o debate público nas redes veio diretamente do governo de Joe Biden, ou seja, do Estado norte-americano. O direcionamento dos algoritmos, mais que isso, não pode ser considerado como uma forma de censura acima do conhecido como imprensa convencional, que controla diretamente todos os conteúdos que podem ser acessados, como no monopólio das televisões e rádios.
O usuário, contanto que mantida a liberdade de publicação nas redes, ainda consegue buscar os conteúdos que lhe sirvam, e justamente por isso uma restrição cada vez maior é buscada pelo imperialismo nas redes sociais. A demanda pelo serviço ainda está atrelada ao fato de ser possível, na internet, uma grande migração de usuários de plataformas num curto espaço de tempo, o que torna a adoção de uma política intensa de censura numa manobra suicida para os donos das mesmas. É lógico, isso não anula o fato de que o critério dos algoritmos deveria ser aberto, de modo a garantir um maior controle pelos usuários.
O que vemos aqui por parte do Estado, contudo, não é um questionamento desse direcionamento político, da tentativa de ocultação de determinados conteúdos com base em posições sobre assuntos considerados sensíveis para o imperialismo. O problema que está sendo apontado é o contrário, é a utilização das redes pelos usuários segundo seus próprios interesses, o que formaria “bolhas”. Ora, mas as chamadas bolhas nada mais são, em grande medida, que um reflexo do conteúdo buscado pelos usuários. O questionamento a elas é, de fato, um questionamento da possibilidade de o usuário conseguir definir melhor o conteúdo que acessa, o que atenta contra os monopólios das comunicações.
Para disfarçar essa disputa, colocada entre a manutenção da viabilidade de uma rede social e os interesses políticos (e econômicos) dos grandes monopólios, se coloca a observação de que se trataria de uma “lógica financeira”. É lógico, para que a rede mantenha os usuários, ela não pode impedi-los de publicar aquilo que pensam, ou de acessar conteúdos que condizem com suas visões, por uma “lógica política”.
O segundo especialista citado pelo jornal já traça uma equiparação entre ambos os “riscos” à liberdade de expressão:
“O primeiro, diz ele, é institucional, quando as restrições são impostas ou por lei ou por decisões judiciais, fora dos limites previstos na Constituição.
‘O segundo acontece quando grupos se organizam em milícias físicas ou digitais para constranger jornalistas e profissionais de imprensa no exercício de suas profissões’, diz o advogado.”
E aqui temos novos problemas. Em primeiro lugar, existe a pressuposição de que a liberdade de expressão precisa existir enquanto limitada, ou seja, a base do raciocínio parte da existência da censura, que seria supostamente legítima caso prevista na Constituição. Em segundo lugar, há a equiparação absurda entre a existência de milícias que coagem jornalistas, sob ameaças as mais graves, e as chamadas “milícias digitais”, nada mais que pessoas que comentam nas redes, algo de dimensão incomparável. Mas a coisa vai além:
“‘O papel de um Estado Republicano é garantir a liberdade de expressão a todas as pessoas (trata-se de um direito humano inegociável) e impedir qualquer tentativa, pública ou privada, de manipular ou reprimir a expressão do pensamento e da criatividade’, diz o professor da ECA-USP.
Já o advogado afirma que ‘o Poder Judiciário deve assegurar essa abrangência da liberdade de expressão. Mas é importante que a sociedade civil se mobilize sempre para evitar retrocessos nessa área’. ‘O Poder Legislativo deve evitar aprovar leis ou medidas que restrinjam a liberdade de expressão, para além dos limites previstos na Constituição, como aqueles relacionados à honra, a discriminação racial, ou a discursos de ódio’.” (grifos nossos).
Vemos que, apesar da defesa de uma suposta liberdade de expressão, o que há é a constante defesa do cerceamento do direito de livre pensamento. O que seria impedir a “manipulação” da expressão? O que caracterizaria essa manipulação? Um jornal que manifesta determinada ideia, poderia ser acusado de manipular? Trata-se do estabelecimento de um preceito para a repressão da expressão, caso esta seja caracterizada como manipulação. Essa colocação está em contradição direta com a própria frase em que se encontra, que também fala de impedir a repressão da expressão.
No parágrafo seguinte vemos novamente a ideia de que limites à expressão que se encontram em prática pelo Judiciário, e que supostamente estariam de acordo com a liberdade de expressão, o que não é fato, seriam legítimos, e a invocação do chamado “discurso de ódio”. Ao lado da “manipulação”, esta é mais uma forma para caracterizar a expressão e, com base nisso, reprimi-la. O caso é o mesmo para os chamados crimes contra a honra. Hoje notória, a discriminação racial é outro encobrimento para a repressão, como fica evidente pela repressão dos defensores do povo palestino, acusados de antissemitas.
Concluindo, o artigo resgata e defende o PL da Censura, apelidado pelo censuradores como “PL das Fake News”:
“A declaração vai ao encontro do que avalia o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do chamado PL das Fake News e para quem uma eventual regulação das plataformas digitais só deve ser levada a cabo se servir para ampliar a liberdade de expressão.”
Ora, Orlando Silva é tão defensor da liberdade de expressão contra qualquer ditador. Quando o Telegram enviou mensagem a seus usuários denunciando o PL como um projeto de lei para censurar a expressão, o deputado defendeu uma ação judicial contra a empresa, sob pena de suspensão do aplicativo.
O artigo do Estado é uma demonstração de que os verdadeiros censuradores, hoje, disfarçam-se e nomeiam-se como democráticos, mas são aqueles que buscam a implantação de uma verdadeira ditadura, com uma fachada mal pintada de democracia.