“Um cessar-fogo dá a nosso povo algum tempo para respirar, mas também para o luto. Descansar tranquilamente, tendo em conta toda a realidade das perdas e da dor. Regressarão para suas casas e nosso povo irá necessitar mais do que simplesmente de comida.
Voltarão para suas casas e se depararão com pilhas de entulho e começarão a procurar o que restou e as coisas a serem salvas.
Estou feliz pelo meu povo e destruída ao mesmo tempo. O processo de cura será longo e traiçoeiro e nosso povo irá necessitar mais do que comida e a reconstrução de suas moradias, necessitará de saúde mental e de tratamento espiritual para encontrar um caminho para a libertação.”
Linda Sarsour, poeta palestina
Finalmente, após vários dias de incertezas devido às divisões na coalizão de extrema-direita que governa Israel, o acordo de cessar-fogo em Gaza entre o Hamas e o governo israelense começou a ser implementado neste domingo. Até este momento, foram libertados 3 israelenses cativos em Gaza e Israel deverá fazer o mesmo com os 90 prisioneiros políticos palestinos que serão libertados hoje e cujo nome já foi divulgado. Em Gaza, uma multidão os aguarda e festeja. Depois de mais de 15 meses de um massacre implacável imposto por um dos exércitos mais poderosos do mundo, apoiado de forma incondicional pelos EUA, a principal potência econômica e militar do mundo. Bombardeios sistemáticos a zonas de grande densidade populacional, utilização de armas proibidas como bombas de fósforo branco, ou bombas de 1000 quilos para destruir edifícios inteiros (segundo a ONU, 66% das unidades habitacionais foram destruídas). O resultado são mais de 46 mil mortos, cerca de 100 mil feridos, cerca de 70% compostos por mulheres e crianças, de acordo com estimativas de organismos da ONU. Segundo a revista científica médica The Lancet, este número seria muito maior por conta dos resultados indiretos da agressão genocida de Israel (leia-se fome e doenças). A referida revista estimou em 186 mil os mortos, em agosto do ano passado, quando a contagem oficial era de 36 mil mortos. Esses dados combinados com a destruição do sistema de saúde e escolar, terminaram por configurar um quadro que, no conjunto, levou a África do Sul a entrar na Corte Internacional de Justiça (órgão subordinado à ONU) com uma acusação de genocídio contra o estado sionista. Esta ação foi tão brutal que a Corte admitiu como plausível a acusação da África do Sul.
Depois de 15 meses, os sionistas se dispuseram a aceitar uma proposta de cessar-fogo que admitia algumas questões exigidas pelos palestinos praticamente desde o começo do ataque assassino de Israel. O acordo tem seus problemas, mas foi fruto de uma combinação de circunstâncias:
_ a continuidade da resistência palestina em Gaza que, apesar da diferença absurda do enfrentamento de forças militares de um grupo guerrilheiro e um dos exércitos mais fortes e modernos do mundo. Nas condições mais difíceis, os palestinos continuavam causando baixas em combate aos israelenses em Gaza, que se calcula próximas a 500 soldados e oficiais. Isso é um elemento do que se denomina de fadiga da guerra que impacta a vida dos israelenses nestes 15 meses, mesmo que seja infinitamente inferior ao que passam os palestinos: mais de 100 mil deslocados na região próxima a Gaza e no Norte de Israel; a emigração de mais de 700 mil judeus israelenses (correspondentes a 10% da população judaica), em geral com alta capacitação profissional; os problemas econômicos causados pela guerra, como a falta de trabalhadores em vários setores – na agricultura, construção civil, que empregavam palestinos ou trabalhadores temporários de países do Extremo Oriente; os problemas de abastecimento com a solidariedade dos houtis com os palestinos que diminuíram drasticamente o tráfego para o porto de Eilat, de onde provêm os navios do extremo-oriente. Como consequência, o crescimento do PIB israelense caiu de 6% em 2022, caindo para 2% EM 2023 E 0,2% em 2024. Por último, mas não menos importante, a saída de alguns investidores importantes, como a Intel, que anunciou o cancelamento do investimento de U$25 bilhões para ampliar uma fábrica de chips. Ao final de 2024, outra notícia que impacta no setor de alta tecnologia israelense foi a decisão do fundo soberano norueguês – o maior do mundo- de desinvestir tudo que possuía na mais importante empresa de telecomunicações israelense, a Bezek, em represália a suas operações na Cisjordânia.
Um elemento muito importante de crise na sociedade israelense é a crescente divisão dentro da população judaica, entre a extrema-direita baseada nos colonos da Cisjordânia e de Jerusalém e setores ultraortodoxos com o setor mais liberal do sionismo que governou por muito tempo Israel (e realizou todas as limpezas étnicas e guerras contra os palestinos e os povos árabes). Antes da guerra de Gaza, essas diferenças se expressaram em uma tentativa de mudança nas leis básicas do estado (Israel não tem constituição) e que ameaçava as liberdades democráticas dos judeus israelenses (porque para os palestinos elas já eram restritas). A irrupção da guerra, suspendeu por um tempo essas diferenças, mas o tema dos israelenses cativos em Gaza levou a temperatura a subir muito, como se viu na negativa por muitos meses do governo de negociar propostas de cessar-fogo similares a esta.
Outro fator fundamental foi a extensão inédita da solidariedade com a causa palestina que, sem conseguir em geral mudar a posição de seus governos, tornou-se um fator de pressão que não existia anteriormente. Houve imensas manifestações como não eram vistas nos países europeus e nos EUA há várias décadas, apesar da repressão estatal, inclusive nas comunidades judaicas, em especial a americana e na juventude.
O cessar-fogo terá 3 etapas:
A primeira delas que começou neste domingo, 19 de janeiro e durará 6 semanas. Nelas devem cessar todas as operações militares. As tropas israelenses começarão a se retirar gradualmente das regiões populosas palestinas, ficando a 700 metros do lado de Gaza da borda com Israel. Não está claro até agora a forma de retirada do chamado corredor Netzarim, que corta a Faixa em duas metades – Sul e Norte- o que possibilitaria, em tese, o começo do retorno em grande escala dos deslocados para seus lugares de moradia no Norte. Calcula-se que haja 1 milhão de palestinos de Gaza nessa situação e que um número não claro deles já começou a se movimentar para retornar a suas residências, na forma em que se encontrem. A vigilância aérea israelense deverá ser reduzida a no máximo 12 horas por dia. A partir do sétimo dia, começarão as sucessivas libertações de prisioneiros/cativos. Com relação aos israelenses cativos em Gaza, a prioridade será para as mulheres, crianças e idosos de mais 50 anos. Um total de 33 israelenses cativos serão libertados nesta fase. Para cada civil israelense libertado/a 30 presos palestinos serão libertados e 50 palestinos por cada soldada israelense. O acordo também estipula que Israel libertará 30 palestinos condenados à prisão perpétua. É um dos pontos mais sensíveis, porque trata-se de dirigentes que podem fortalecer o movimento de resistência palestina. Há um movimento em Israel para tentar burlar essa cláusula, tanto nos tribunais como nas ruas.
A previsão é que haja um aumento qualitativo na ajuda humanitária, que passará de 60 para 600 caminhões.
A segunda fase, após as 6 primeiras semanas terá a mesma duração e prevê a libertação dos cativos restantes em poder do Hamas, militares e civis, com a proporção de 1 para 30 ou 50, como anteriormente explicado do lado israelense.
Haverá negociações prévias para esta fase que poderão tornar permanente o cessar-fogo.
A terceira fase, envolverá a discussão sobre a reconstrução de Gaza e, crucialmente, a respeito de quem governará a Faixa. A Autoridade Palestina já se declarou “disposta” a voltar a governar Gaza, o que não terá grande apoio entre a população palestina. Depois que se passaram quase vinte anos depois da última eleição que elegeu o Hamas em um evento certificado por organizações como o Centro Jimmy Carter em 2006, a realização de eleições livres poderia ser uma alternativa democrática à autodesignação de qualquer corrente.
O acordo é uma vitória política importante, ainda mais pela derrota militar ocorrida, mesmo que não tenha havido a destruição completa do Hamas. Aliás, ao observar as pesquisas de opinião na Cisjordânia ou uma gigantesca manifestação celebrando o acordo realizada em Amã em que se gritavam palavras de ordem a favor do Hamas, parece que esse objetivo não teve absolutamente um triunfo, pelo contrário. O clima de vitória política se refletiu nas manifestações na própria Gaza e pelo mundo árabe porque o alívio de terminar com uma guerra mortal, receber seus entes queridos de volta e de ter expectativas de melhoras importantes em um prazo rápido despertou o júbilo.
No entanto, há limites nesse processo:
– em primeiro lugar, há vários pontos em aberto no acordo como o cessar-fogo permanente e a retirada das tropas israelenses, aos que se deve agregar o fim do bloqueio asfixiante sobre Gaza. Esses pontos podem causar impasses, sejam pela pouca clareza das cláusulas ou pela interpretação deformada delas.
– há aspectos políticos que podem desestabilizar a continuidade desse acordo. O primeiro é a política de Trump em relação a ele: Trump parece ter apoiado os termos do acordo, mas a respeito do primeiro problema poderá seguir sua tendência tradicional de apoio absoluto a Israel, ainda que nesse aspecto seja difícil pensar em posição mais pró-israelense do que a de Biden. A outra questão pode vir de alguma provocação como tantas feitas pelo exército israelense, violando aspectos-chave do acordo. Ou algo no mesmo sentido realizado pelos setores militares israelenses ligados à extrema-direita.
Depois do genocídio, a saída parcial das tropas, o fim temporário dos bombardeios e a esperança de voltar para seus domicílios são muito importantes. As cenas de alegria quando da divulgação do acordo e ontem e hoje esperando a libertação dos presos políticos mostram que os israelenses apesar de vencerem militarmente não transformaram Gaza em uma cidade submissa, nem muito menos o conjunto do povo palestino. Por isso, Israel proibiu expressões de “júbilo próximas das prisões em que serão libertados, que é uma ação elementar com a libertação de presos políticos, ainda mais em uma sociedade em que 40% da população masculina passaram em algum momento de suas vidas pelos cárceres sionistas.
Mas é preciso o alerta total para as possíveis provocações israelenses ou a intransigência nas negociações para os passos seguintes.
Alertamos que o exército colonial de Israel continua a poucos km de Gaza e poderá voltar a golpear a Faixa, assim como poderá aumentar sua política de ataques mortais na Cisjordânia, buscando “punir” os palestinos que se solidarizaram com seus irmãos de Gaza.
Além disso, uma paz durável requer resolver as causas profundas da violência no conflito Israelo-palestino, tais como acabar com a ocupação israelense de todos os territórios palestinos ocupados, com o bloqueio de Gaza, a discriminação racista sofrida pelos palestinos em Israel, o fim da colonização na Cisjordânia e Jerusalém, fontes da violência e desapropriação dos palestinos. Sem esquecer a luta pelo direito de retorno aos refugiados palestinos pela Nakba de 1948, uma luta fundamental do povo palestino e a luta pelos direitos iguais entre judeus e palestinos no que é hoje Israel.
As mobilizações e iniciativas para punir os responsáveis por crimes de guerra e pela ocupação e discriminação dos palestinos devem prosseguir. Esse é o sentido da incriminação de Israel e seus dirigentes nas Cortes Internacionais subordinadas à ONU por crimes de guerra
As mobilizações pelo mundo, particularmente nos EUA, e a mobilização da juventude ajudaram a esta situação de vitória parcial (política e, claro, não militar), mas vamos ver o que acontecerá. A reconstrução de Gaza é um tema muito complicado e, assim como a volta dos deslocados para o Norte da Faixa, são essenciais. O BDS tem sido uma arma fundamental para denunciar e punir os crimes do estado israelense e de suas empresas e instituições e sua importância não cessou de crescer com o genocídio em Gaza. Uma luta particularmente importante tem sido a exigência do fim dos acordos e convênios com empresas que produzem armas ou tecnologia ligada à área militar. No Brasil, temos um caso exemplar: o estado brasileiro abriu uma concorrência para a compra de blindados, no valor de 1 bilhão de reais, que foi vencida pela Elbit, a maior empresa de tecnologia militar israelense. A pressão do BDS fez com que a compra tenha sido suspensa, mas o movimento segue exigindo que seja cancelada.
Por último, na terceira fase do acordo está previsto que tenha grande importância quem governará Gaza. Nem ocupação israelense nem bloqueio, mas eleições livres poderiam ser uma saída.