“Gaza não é igual ao Holocausto”
por uma voz que se faz ouvir
Essa frase tem sido repetida toda vez que alguém compara, em público, a situação em Gaza com aquela perpetrada pela Alemanha nazista contra o povo judeu. É verdade dizer que a situação não é igual ao Holocausto. O Holocausto é uma situação sui generis. Utilizou o método taylorista para explorar ao máximo o povo judeu como mão de obra escrava, que, em seguida, era descartada de maneira eficaz nas inúmeras câmaras de gás.
Nos campos de concentração, a comida era racionada. A fome, a privação do sono e a alienação do trabalho eram os mecanismos aplicados para controlar os corpos e garantir a obediência irrestrita. Os campos eram organizados como as outras instituições burocráticas da sociedade disciplinar descrita por Michel Foucault, nas quais os indivíduos perdiam sua subjetividade, e uma numeração tatuada em seus corpos determinava as atividades de cada um. A vigilância era constante, e o controle do outro era realizado por todos — inclusive pelos próprios prisioneiros judeus.
A publicidade sobre os campos de concentração também era controlada. A propaganda oficial era positiva, com os prisioneiros sendo obrigados a escrever cartas sobre “a boa qualidade da comida” e o regime produzindo vídeos que mostravam à comunidade internacional como os trabalhadores judeus contribuíam para o desenvolvimento industrial da Alemanha nazista.
É verdade. Gaza não é igual ao Holocausto. Na sociedade de desempenho descrita por Byung-Chul Han — em que a tecnologia substituiu grande parte do trabalho manual e agora também o intelectual, com o avanço da inteligência artificial — o governo israelense não depende mais do trabalho dos palestinos. Afinal, a miséria deles em Gaza é apresentada como conseqüência do seu próprio fracasso em se tornarem empreendedores ricos e eficientes.
Sem valor pelo trabalho per se, com a precarização da força de trabalho, a situação em Gaza é diferente. A concentração dos corpos é feita somente para que o extermínio seja realizado de forma eficaz. O acesso à comida não é mais racionado — ele é regulado pela lógica da competição selvagem. Seus corpos não precisam mais receber uma numeração tatuada. Afinal, o mais importante não é o controle, mas o espetáculo.
Os palestinos, descontrolados em busca de alimentos, são filmados. As íris de seus olhos são escaneadas, enquanto a tropa israelense decide quantos daqueles corpos serão alimentados nos próximos dias. Diariamente, o jornal britânico “The Guardian” informa quanto palestinos “suspeitos” foram assassinados na fila da ajuda humanitária. Doze, cinqüenta, sessenta… O número varia, mas gênero e idade não servem de proteção.
É verdade, pois, Gaza não é igual ao Holocausto. Muitos civis assistem ao espetáculo — alguns em silêncio, outros indignados. Manifestações pacíficas são organizadas nas grandes capitais do Ocidente e Oriente. Ativistas globais revoltados com a situação organizam uma embarcação- “A Flotilha da Liberdade”, com o objetivo de barrar o cerco humanitário a população em Gaza. Ao mesmo tempo, mais de dez mil ativistas do mundo árabe caminham em direção ao Egito para romper o cerco por via terrestre.
O número de civis revoltados no mundo se amplia a cada criança que morre de fome no território palestino. Porém, isso não é suficiente para gerar comoção internacional, nem mesmo para paralisar a perversidade do governo de Israel. Netanyahu pode fazer tudo contra aqueles que o questionam. Ele intercepta a Flotilha ilegalmente em águas internacionais, prende e interroga ilegalmente os ativistas e cria mais um espetáculo para a mídia internacional.
Em silêncio, os líderes das grandes nações ocidentais e orientais permanecem. As palavras, quando ditas, não são firmes para ecoar na ofensiva de Israel, que segue com a sua política nefasta sem sofrer qualquer sanção econômica ou política. Hoje, Gaza já se tornou uma página virada do jornal. Os meios de comunicação se esqueceram, rapidamente, dos famintos. Afinal, o governo israelense encontrou mais uma ameaça regional – o Irã.
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