Era difícil ignorar o cartaz. Em meio à multidão que lotou as ruas da Alemanha no último final de semana, uma placa destacava a silhueta de Friedrich Merz, líder da União, a coligação entre a União Democrata-Cristã (CDU) e a União Social-Cristã (CSU), e das pesquisas de intenção de voto, ao lado de Franz von Papen, chanceler alemão que, em 1933, abriu caminho para Adolf Hitler assumir o poder do país e derrubar a república de Weimar.

A mensagem, escrita em inglês, provocava o leitor a encontrar a diferença entre os dois e fazia remeter à uma pergunta direta: a história se repete?

Nas ruas de Berlim, Frankfurt, Hamburgo e Munique, milhares de manifestantes carregavam faixas contra a extrema direita e denunciavam a conivência da CDU com a Alternativa para a Alemanha (AfD).

No sábado e no domingo, cerca de 300 mil pessoas participaram de protestos, sob o lema “Wir sind die Brandmauer!” (“Nós somos a barreira de fogo!”), contra o avanço da extrema direita e o papel do partido de Merz nesse processo. Em Berlim, a mobilização reuniu cerca de 200 mil pessoas, segundo a organização, enquanto em Hamburgo, aproximadamente 50 mil ocuparam as ruas.

Protestos menores ocorreram em Dresden, Leipzig e Stuttgart, sempre com uma mesma reivindicação: que Friedrich Merz adote uma postura clara contra qualquer aproximação com a AfD, partido ultranacionalista e xenófobo que já figura como segunda maior força política do país em algumas pesquisas.

A crise política que envolve a Alemanha tem suas raízes no desgaste dos partidos tradicionais, na recessão econômica e no crescimento da extrema direita, que capitaliza o descontentamento popular. A AfD, inicialmente marginalizada, passou a se consolidar como uma força eleitoral de peso, especialmente no leste do país, onde o desemprego e o desinvestimento alimentam o sentimento de abandono.

Paralelamente, a CDU, maior partido de oposição, enfrenta dilemas internos. Se por um lado há uma ala que defende o isolamento da AfD, por outro há setores que consideram alguma forma de cooperação com a extrema direita em governos estaduais. Merz tem oscilado entre críticas à AfD e gestos que sugerem uma flexibilização da tradicional barreira entre conservadores e ultranacionalistas.

Mas quem foi Franz von Papen e qual foi seu papel na ascensão do nazifascismo?

Franz von Papen foi um aristocrata católico e político conservador que desempenhou um papel central na destruição da República de Weimar e na ascensão de Adolf Hitler ao poder. Ele representava o que havia de mais reacionário na elite política alemã: monarquista, antirrepublicano e profundamente hostil ao movimento operário.

Sua trajetória é a prova histórica de que o conservadorismo tradicional, ao invés de barrar a extrema direita, muitas vezes lhe pavimenta o caminho.

Após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Alemã de 1918-1919, a República de Weimar nasceu cercada por inimigos. A direita alemã nunca aceitou a nova ordem democrática e alimentou o mito da “punhalada nas costas” – a teoria conspiratória de que a derrota da Alemanha se deveu a socialistas, comunistas e judeus, e não ao fracasso militar.

Nos primeiros anos da república, levantes da esquerda, como a Revolta Espartaquista de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, foram brutalmente esmagados pelos Freikorps, milícias paramilitares formadas por ex-soldados e financiadas pelos conservadores e sociais-democratas. No entanto, a verdadeira ameaça à democracia não veio da esquerda revolucionária, mas da direita reacionária que conspirava contra o regime desde seu nascimento.

Nos anos 1920, sob os governos de Friedrich Ebert e Gustav Stresemann, Weimar teve um breve período de estabilização econômica e modernização social, mas isso não foi suficiente para conter o ressentimento da burguesia industrial e das elites militares, que viam o crescimento das organizações comunistas como uma ameaça crescente.

A crise de 1929, que mergulhou o país em recessão, desenterrou esse ódio latente e fortaleceu os setores mais extremistas da política alemã. Em meio ao colapso econômico, a burguesia alemã decidiu que era hora de sepultar de vez a democracia – e foi nesse contexto que Franz von Papen entrou em cena.

Em 1932, Papen foi nomeado chanceler pelo presidente Paul von Hindenburg, sem qualquer base parlamentar, governando por decretos de emergência. Seu governo foi uma ponte para o autoritarismo: dissolveu parlamentos estaduais, reprimiu movimentos operários e revogou medidas sociais da República. Incapaz de estabilizar o país, foi substituído por Kurt von Schleicher, mas não saiu de cena. Pelo contrário, Papen tornou-se o grande arquiteto da ascensão de Hitler ao poder.

No início de 1933, as elites conservadoras buscavam um líder que pudesse destruir a esquerda e, ao mesmo tempo, ser manipulado pela aristocracia e pelos industriais. Von Papen, acreditando que poderia “domar” Hitler e usá-lo como um fantoche da direita tradicional, costurou um acordo para que ele fosse nomeado chanceler. A condição era que apenas três ministros nazistas fossem incluídos no gabinete, enquanto os conservadores manteriam a maioria dos cargos de alto escalão.

“Nós contratamos Hitler”, teria dito um confiante Papen. Pouco tempo depois, Hitler eliminaria qualquer vestígio de oposição dentro do governo e colocaria Papen e seus aliados à margem do regime que ajudaram a construir.

Franz von Papen entrega simbolicamente o poder a Hitler no “Dia de Potsdam”, 21 de março de 1933.Von Papen acreditava que Hitler seria um fantoche da direita tradicional. Foto: Reprodução

A aliança entre conservadores e nazistas custou caro. Poucos meses depois da posse, o incêndio do Reichstag serviu como pretexto para um estado de emergência, permitindo a perseguição massiva a comunistas, socialistas e sindicalistas.

Milhares foram presos, deportados para campos de concentração ou simplesmente assassinados pela Gestapo e pelas SA, uma divisão paramilitar do partido de Hitler. O KPD (Partido Comunista Alemão), que contava com uma forte base operária, foi um dos primeiros alvos da repressão nazista.

Em junho de 1934, a “Noite das Facas Longas” liquidou os últimos vestígios da direita tradicional dentro do regime. Franz von Papen sobreviveu, mas viu seu grupo ser esmagado. Seu erro de cálculo entregou a Alemanha nas mãos de Hitler e ajudou a selar o destino de milhões de pessoas que seriam exterminadas nos anos seguintes.

A ascensão do nazismo não foi um acidente da história, mas um processo em que o conservadorismo alemão atuou como cúmplice ativo. Franz von Papen e seus aliados abriram as portas do poder para Hitler, acreditando que poderiam usá-lo para seus próprios interesses. No final, foram descartados – e, com eles, a própria democracia alemã.

A história mostra que quando a direita tradicional flerta com o fascismo, é apenas uma questão de tempo até ser engolida por ele.

Friedrich Merz, ambiguidade e rendição diante da extrema direita

A CDU, sob a liderança de Friedrich Merz, desempenha um papel fundamental na atual crise política alemã e é figura central na rendição da direita tradicional diante da extrema direita.

Ao longo dos últimos meses, Merz e seu partido têm oscilado entre a retórica tradicionalmente conservadora e gestos que sugerem uma abertura cada vez maior ao discurso da AfD e de sua líder, Alice Weidel. Se, no início de sua trajetória como líder da oposição, ele afirmava que “não haveria colaboração” com a AfD, hoje a realidade se mostra diferente. 

A CDU já aceita alianças indiretas nos estados da Turíngia e da Saxônia-Anhalt, onde a extrema direita cresceu de forma significativa.

No Bundestag, Merz lidera a CDU em uma votação decisiva, dando à AfD sua primeira vitória parlamentar. Foto: reprodução

Uma pesquisa publicada pela Fundação Rosa Luxemburgo, em março de 2024, “Will the firewall hold? – Study on cooperation with the extreme right in East German municipalities (“Será que o firewall vai aguentar? – Estudo sobre a cooperação com a extrema direita nos municípios da Alemanha Oriental, na tradução livre), identificou 121 casos de cooperação entre partidos democráticos e a extrema direita em municípios do leste da Alemanha, entre o verão de 2019 e o final de 2023. 

O estudo destacou que, entre todos os grandes partidos políticos, a CDU de Merz apresentou o maior número de colaborações com a AfD, principalmente por meio do apoio a moções propostas pelo partido de extrema direita. 

Essas colaborações incluíram comportamentos de votação conjunta, eleições conjuntas de funcionários e acordos, fornecendo uma base empírica para os atores políticos defenderem a necessidade de medidas para mitigar a influência de ideologias de extrema direita na governança local. 

Além disso, uma investigação conduzida pela MDR Investigativ revelou que, em pelo menos 18 dos 50 parlamentos locais nos estados da Saxônia, Saxônia-Anhalt e Turíngia, moções substantivas da AfD foram aprovadas, muitas vezes com o apoio de outros partidos, notadamente a CDU. Esses casos de cooperação indireta indicam uma erosão do “cordão sanitário” que tradicionalmente separava os partidos democráticos da extrema direita nessas regiões. 

O endurecimento das políticas de imigração, aprovado no parlamento alemão na última sexta (31), com votos decisivos da CDU, é um dos episódios que exemplificam como Merz e seu partido alimentam a agenda da AfD. 

O pacote de medidas aprovado pelo Bundestag endurece as condições para requerentes de asilo e abre caminho para deportações  – uma agenda que a extrema direita defende há anos. Enquanto Merz tenta se equilibrar entre um discurso institucional e a necessidade de conter a perda de votos para a AfD, na eleição parlamentar de fevereiro, a CDU acaba por normalizar pautas que, há poucos anos, seriam impensáveis para um partido tradicionalmente ligado à democracia cristã.

Além disso, a recente guinada da CDU tem gerado divisões internas. Enquanto alguns setores do partido, como a ala mais próxima de Angela Merkel, defendem a manutenção de um “cordão sanitário” contra a extrema direita, outras lideranças regionais já cogitam negociações e acordos pragmáticos com a AfD. Friedrich Merz, por sua vez, adota uma postura ambígua, rejeitando formalmente qualquer aliança, mas cedendo em pontos centrais da agenda da extrema direita. Na última sexta, a maioria da CDU no Parlamento da Alemanha voltou com a AfD.

O risco histórico desse movimento é evidente: ao tentar conter o avanço da AfD por meio da incorporação de seu discurso, Merz pode repetir o erro de Franz von Papen, que acreditava que poderia controlar Hitler dentro da estrutura política tradicional. Mas, como a história já demonstrou, quando a direita conservadora normaliza o discurso da extrema direita, é apenas uma questão de tempo até ser engolida por ele.

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Last Update: 04/02/2025