Nestes tempos em que um genocídio acontece na frente das câmeras, acessível a todas as telas, que são também aqueles que veem a inacreditável cumplicidade com a ação de Israel contra a gente palestina – em misto de desinformação e de preconceito com tudo o que significa a resistência ao imperialismo, especialmente aquela vinda do “mundo árabe” e muçulmano – o nome de Sigmund Freud tem sido recuperado como alguém que em seu tempo teria sido solidário, não só a pessoas judias que se deslocavam para a Palestina, tratando de fugir das hostilidades que as acometiam na Europa de então, mas com o sionismo enquanto tal. Elizabeth Roudinesco, biógrafa de Freud e historiadora do movimento psicanalítico na França, chega a dizer que o Pai da Psicanálise nunca deixou de manifestar “solidariedade a seus irmãos sionistas”, tomando sibilinamente por sinônimas expressões de amizade por pessoas e adesão a causas que estas eventualmente assumissem.
Mais ainda: não são poucos os trabalhos que tratam de qualificar o sionismo de Freud, como se este fora um dado já indiscutido; que o diga o conhecido livro Freud e o sionismo, de Jacquy Chemouni. Entre tantas alegações neste sentido costuma-se aludir a uma manifestação simpática de Freud à chamada “Declaração Balfour”, documento de 1917 em que o imperialismo inglês explicita seu compromisso em garantir, numa Palestina que ainda deveria ser conquistada aos otomanos, “um lar nacional para o povo judeu”; ou ainda o fato de que ele aceitou que seu nome constasse, junto a outros como Albert Einstein e Martin Buber, como “membro do conselho honorário [conselho de regentes]” da Universidade Hebraica de Jerusalém, instituição criada em 1925 e que representou um marco na afirmação dos interesses sionistas na região da Palestina.
A questão é que, particularmente no caso de um autor como Freud e uma obra grandiosa e complexa como a sua, atribuições apressadas costumam mostrar-se equivocadas e clichês pró/contra em nada ajudam; e há que se considerar a posição de Freud com as nuances devidas, na diacronia, avaliando os tempos e as conjunturas, considerando que ele estabelece um princípio para o problema do gozo nas sagas humanas envolvendo dominações e usurpações. Isto significa dizer que propor uma adesão de Freud ao sionismo seria destituir a imensa sacada no eixo de suas ideias.
E há que não se esconder documentos. Durante mais de quarenta anos mãos sionistas trataram de ocultar uma carta de Freud em que, articulando sutileza e contundência, ele deixa cristalina sua posição sobre o sionismo. Escrita em 1930, o mesmo ano do prefácio preparado para a edição em hebraico do Totem e tabu – texto pouco visitado, mas indispensável para se acompanhar o que Freud estava pensando a essa altura da vida sobre o “ser judeu”, mostra seu autor acompanhando muito de perto os acontecimentos, não se movendo por ondas circunstanciais e propagandas oportunistas. A carta é escrita em resposta a uma solicitação para um envolvimento pessoal em uma campanha para fomentar a intensificação das migrações para a Palestina; estas deveriam soar como reação a uma suposta intransigência da população palestino-árabe diante de reivindicações sionistas por ampliações dos espaços em frente ao Muro das Lamentações em Jerusalém, que acarretariam demolições de sítios históricos caros à população muçulmana, tanto a habitante ali como aquela que costumava peregrinar de vários lugares do mundo àquele lugar que tomava por sagrado (N. B.: as demolições exigidas em 1929 seriam efetivadas em 1967; eis o primeiro ato do governo sionista que acabava de usurpar o lado oriental da venerável cidade, como efeito da Guerra dos Seis Dias).
Pois bem: em sua resposta Freud estabelece um categórico “não”: “não posso fazer o que o sr. deseja”. E tudo o que vem a seguir fundamenta sua irrevogável negativa. E o desenrolar do argumento lhe salienta os matizes: sua satisfação com o andamento da mencionada universidade e com a prosperidade das colônias judaicas na região não é incompatível com seu “julgamento pouco entusiasmado pelo sionismo”. Mais ainda: Freud não pensa “que a Palestina possa vir a tornar-se um Estado judaico”. Esta impossibilidade se enraíza em motivos vários, a começar da questão dos lugares sagrados para o cristianismo e o mundo muçulmano. Depois de sustentar que “uma pátria judaica” só seria viável se assentada “em solo não conotado historicamente”, mas não numa Palestina tão marcada por heranças culturais ao mesmo tempo convergentes e díspares, Freud reconhece que “o fanatismo religioso de nossos compatriotas tem sua parte de responsabilidade no despertar da desconfiança dos árabes”. Denuncia o que chama “piedade mal interpretada” judaica que leva às provocações à população residente, tudo por conta de um “pedaço do muro de Herodes” (justamente o Muro das Lamentações, em torno do que haviam ocorrido as manifestações de agosto do ano anterior). Tal “piedade” é inaceitável, na medida em que minimiza, ao mesmo tempo em que desafia, “os sentimentos dos habitantes da região”.
E a carta termina com a caracterização do sionismo como expressão de uma “esperança injustificada”. Não foi à toa que seu destinatário tratou de fazê-la desaparecer da vista geral. E assim ela ficou, oculta e desconhecida, pelos quarenta anos seguintes. Publicada pela primeira vez em meados dos anos 1970, nem por isso se pode dizer que alcançou o lugar devido, no tocante às posições de seu autor em relação a estes temas, que ganhariam corpo em seu monumental opus ultimum, Moisés e o monoteísmo, cujo caráter não-sionista foi brilhantemente salientado por ninguém menos que Edward Said. É pertinente, portanto, que, num contexto como o atual, este documento seja retirado enfim do ostracismo, ganhe o debate público e posicione a figura de Freud de maneira condizente com aquilo que sua obra nos lega.