Estado de bem-estar e Europa de paz

Franceses votam pelo Estado de bem-estar e por uma Europa de paz

por [Claudia de Borba Maciel]

A eleição parlamentar confirmou a tese de que a parcela progressista da sociedade é maior do que aparece nas pesquisas de opinião e na cobertura da mídia, mas só vai às urnas quando é preciso posicionar-se contra o retrocesso político

Pela primeira vez em quase 30 anos, uma frente de partidos de esquerda conquistou a maioria dos 577 assentos da Assembleia Nacional da França, após disputa de voto distrital em dois turnos. A Nova Frente Popular (NFP) elegeu 182 deputados, dos quais 76 da França Insubmissa (LFI), 64 do Partido Socialista (PS), 33 dos Ecologistas e 9 do Partido Comunista (PCF).

O centro, representado pela coligação Juntos, do presidente Emmanuel Macron, elegeu 168 deputados, e o partido Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen, com aliados republicanos de direita, somou 143.

Consolidam-se, assim, três blocos políticos fortes e diferenciados, seguidos pela bancada de 46 Republicanos, a direita que não apoiou Le Pen. Outros 25 eleitos pertencem a partidos pequenos ou se declaram independentes.

A maioria absoluta de 289 cadeiras não foi alcançada por qualquer dos blocos isoladamente e, para a aprovação de leis, será necessário formar coalizões por tema.

Nas grandes cidades, como Paris, Lyon e Marseille, a Nova Frente Popular venceu por larga maioria. Os 18 distritos de Paris elegeram o Juntos ou a NFI, liderada por Jean-Luc Mélenchon. A esquerda foi mais forte nas regiões costeiras da Bretanha e da Baixa Normandia, de tradição católica, além dos Altos Pirineus e dos Alpes.

O voto na extrema direita concentrou-se em três zonas: a fachada mediterrânea, onde convivem, em tensão, os colonos retornados da Argélia e os novos imigrantes do Magrebe e da África subsaariana; a depressão central, área de agricultores brancos, isolados pela falta de serviços públicos, como transporte e hospitais, origem do movimento dos “gilets jaunes” contra o preço dos combustíveis; e o Norte, em que a decadência industrial do carvão, aço e têxteis converteu a classe operária outrora sindicalizada em desempregados pobres e ressentidos.

A principal novidade da eleição foi a retirada recíproca de candidaturas entre a frente de esquerda e parcelas do centro, a fim de possibilitar a vitória dos candidatos democráticos com maior viabilidade eleitoral. Mais de 200 concorrentes, a maioria da França Insubmissa, renunciaram em favor de nomes moderados.

Foi a maior taxa de comparecimento (67% ou 28,8 milhões) desde as legislativas de 1997, que deram maioria absoluta ao socialista Lionel Jospin, para governar em coabitação com o então presidente gaulista Jacques Chirac.

Confirmou-se, assim, a tese de que a parcela progressista da sociedade é maior do que aparece nas pesquisas de opinião e na cobertura da mídia, mas só vai às urnas quando é preciso posicionar-se contra o retrocesso político. Os jovens, a população das periferias e as mulheres se mobilizaram e encheram as ruas, em apelo à “barragem” da extrema-direita.

A esquerda

A aliança dos partidos de esquerda e verdes consolidou-se em torno de um programa de recuperação do poder de compra e de prerrogativas sociais, inspirada no Front Populaire do socialista Léon Blum, movimento que, em 1936, resistiu à ascensão do nazifascismo e passou à história como marco da conquista de direitos fundamentais.

O programa de governo da Nova Frente Popular inclui, entre outros pontos:

  1. controle temporário do preço de bens de primeira necessidade;
  2. aumento do salário mínimo;
  3. restauração da idade de aposentadoria anterior à reforma previdenciária imposta por decreto presidencial;
  4. reversão das restrições ao seguro-desemprego;
  5. benefícios aos idosos pobres, que vivem em casas de repouso;
  6. reconhecimento do Estado da Palestina (medida que depende de acordo com o Eliseu, uma vez que a política externa é prerrogativa presidencial)

Apesar de críticas da ortodoxia econômica e de agências de risco internacionais, o programa da NFP foi legitimado pela economista e prêmio Nobel francesa, Esther Duflo, em artigo publicado no Financial Times, pouco antes do segundo turno, em que defendeu a retomada da produção, a redistribuição de renda e a transição ambiental como agendas prioritárias para a França.

O centro

No campo do autointitulado “extremo centrismo”, Emmanuel Macron logrou converter em recuo honroso a débâcle anunciada pelas eleições europeias, graças ao acordo de apoios mútuos com a frente de esquerda.

A extrema-direita

Depois de renegar a herança do pai e mudar o nome do partido, Marine Le Pen busca tornar a Reunião Nacional mais palatável aos setores empresariais, tendo apresentado Jordan Bardella, de 28 anos, como candidato a substituto do macronismo decadente.

O oportunismo da manobra, entretanto, afastou o voto de parte dos trabalhadores desencantados, que em alguns distritos voltaram a apoiar a esquerda.

A reação foi imediata. Mélenchon acusou o presidente da República de ignorar os resultados eleitorais e tentar restabelecer o “direito de veto real”, da monarquia, contra o sufrágio universal da República.

Sairá em vantagem quem melhor souber interpretar a mensagem das urnas. O eleitorado demonstrou estar disposto a correr riscos pela democracia e pela reconstrução de um Estado do bem-estar que garanta cidadania plena ao conjunto dos franceses, independente de sua origem.

Cláudia de Borba Maciel é diplomata e embaixadora do Brasil na Guiné Bissau. Mestre em relações internacionais pela UNB, atuou nas embaixadas do Brasil em Buenos Aires, Caracas, Quito e Paris, no Consulado em Munique e na Missão junto à ONU, em Genebra.

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Última Atualização: 23/07/2024