Francisco num hospital de campanha

por Jean D. Soares

Viajou com um mala e se tornou papa. Ninguém lhe dava muito. Um bispo já em idade avançada, que vem da longínqua Argentina para o coração do Vaticano. E ele fez. Incansavelmente manifestou, escreveu e questionou não só o rumo das crenças dos que o seguiam, como de todos os outros que não acreditam em papas e pastores.

Lembro da curiosidade que sua encíclica “Laudato si” despertou nos meios intelectuais, geralmente refratários ao discurso religioso. O Sínodo da Amazônia e os discursos sempre direcionados na busca de justiça social, transição ecológica e paz na terra.

Em tempos de divisões e cismas, Francisco era um caso raro de quase consenso. Mesmo quem não o adorava, encontrava nele méritos incontornáveis – alguma inteligência diplomática, uma insistente vontade de renovação dos valores, uma crença na vida simples, sem exageros e esbanjamentos.

Viveu num “hospital de campanha”, um mundo cada vez mais confuso e beligerante. E nele deu abrigo e procurou tratar o sofrimento psíquico a quem se lhe dirigia. Com isso, deixou de lado a imagem comum da igreja como um “posto de fronteira” que julga e segrega.

Reiterou sempre que pôde símbolos que remetiam aos franciscanos, numa versão do século XXI. Buscava o contato com a gente simples e evitava sempre que possível ostentações desnecessárias. Para o anedotário, entram fugas da rotina memoráveis para tratar dos óculos ou comprar novos calçados ortopédicos[1].

Se para alguns foi um revolucionário “debole” para outros foi alguém que soube usar da oportunidade para pôr questões, suscitar o debate. Ousou dizer, semeou bispos com visões renovadas um pouco por todo o mundo[2], pôs em questão o caráter tão eurocêntrico das instituições católicas. E brincou como poucos fizeram ocupando um cargo de tal envergadura.

No início de seu papado, esclareceu “Porque nós negociamos bem: o papa é argentino, e Deus é brasileiro” e já mais para o fim, quando a emergência do bolsonarismo assolava o país, o papa em  piada amigável, não deixou de criticar a embriaguez que tomava conta da nação: “vocês não têm salvação. É muita cachaça e pouca oração”[3]

Francisco era um imigrante. Partiu da Argentina sem nunca mais retornar, certamente para evitar a política da boca pequena, da falácia e dos espertos de ocasião. Do padre que ajudou gente carente em Buenos Aires para o papa que procurou ampliar sua vontade de ajudar, deste guardar-se-á a imagem de alguém que como muitos de nós nutria uma esperança por um futuro em que as pessoas se encontrassem outra vez para partilharem algo, para encontrarem entre si uma esperança comum.

Jean D. Soares é doutor em filosofia e produtor cultural.


[1]https://oglobo.globo.com/brasil/religiao/papa-francisco-conclui-missao-revolucionaria-comprar-seus-sapatos-20678981

[2]https://www.publico.pt/2025/04/21/sociedade/noticia/francisco-alterou-perfil-eurocentrico-cardeais-vao-escolher-sucessor-2123356

[3]https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/04/21/papa-francisco-ja-fez-piada-sobre-brasileiros-nao-tem-salvacao-e-muita-cachaca-e-pouca-oracao.ghtml

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Last Update: 25/04/2025