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Por Francisco Batista Júnior*
Nem nos recuperamos do “Agora Tem Especialistas” com o governo destinando bilhões de reais para o setor privado — enquanto a rede pública agoniza em todo o País com o crônico subfinanciamento –, somos açoitados por uma declaração em vídeo (veja no topo) do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, defendendo que farmácias e drogarias podem fazer parte da estrutura dos supermercados, como forma, segundo ele, de “ampliar o acesso” da população.
O Brasil tem uma das culturas mais perversas e em certa medida criminosa de disponibilizar o medicamento à população.
Num quadro em que as farmácias e drogarias são meros estabelecimentos comerciais a serem explorados no mercado por quem dispuser de condição financeira para tal, e os medicamentos mercadorias em grande medida oferecidas por balconistas que procuram aumentar seus rendimentos através das vendas, independente da necessidade ou não da pessoa, ou mesmo em gôndolas onde o cliente pode escolher aquilo que lhe aprouver — seja porque viu numa propaganda de TV ou porque foi indicado por um amigo –, temos um preocupante e crítico quadro de resistência bacteriana, intoxicações medicamentosas, doenças iatrogênicas e agravamento de diversas patologias, entre outros.
Se há uma coisa que não falta no Brasil é farmácia. Organizações internacionais preconizam, regra geral, que cada país deve ter uma farmácia para cada grupo de 10.000 pessoas.
Apesar de ser um número flutuante, quase diariamente se abre e se fecha farmácia, todos os indicadores apontam que o Brasil é o país com o maior número de farmácias no mundo.
Na avaliação mais modesta, superior a 92.000 estabelecimentos, o que se traduz numa proporção absurda de uma farmácia para cada grupo de 2.300 pessoas.
Priorizando os centros urbanos com importantes densidade demográfica e poder aquisitivo, isso significa, na prática, uma disputa muitas vezes sem qualquer critério técnico ou limite ético pelo cliente – somos o país da “empurroterapia” – e abandono de lugares sem potencial populacional ou condição econômica mínima.
Assim sendo, a possível defesa do ministro de “ampliar o acesso” com farmácias em supermercados soa bem mais que descabida, é irresponsável.
No país da assistência farmacêutica ideal que defendemos, os estabelecimentos privados podem existir, sendo propriedade exclusiva de farmacêuticos, distribuídos de forma regionalizada e estruturados como efetivos serviços de saúde com profissionais treinados e farmacêuticos desempenhando o papel insubstituível de acolhimento, orientação e acompanhamento do tratamento das pessoas que recorrem ao serviço.
No Brasil real que temos, em que farmácias e drogarias são estabelecidas deliberadamente umas ao lado das outras com o propósito literal de disputar clientes, e com um Congresso majoritariamente a serviço do mercado e dos empresários, sabemos ser isso praticamente impossível.
Só temos, portanto, uma possibilidade de alterar esse quadro de modo a garantir assistência farmacêutica ampla, universal, includente, resolutiva, responsável e qualificada: a partir de uma iniciativa do governo federal, de forma tripartite e pactuada, conjuntamente com estados e municípios, construir uma grande rede de estabelecimentos farmacêuticos públicos, distribuídos em todos os sistemas municipais de saúde de forma regionalizada e hierarquizada nas Unidades Básicas, Unidades de referência e nas Policlínicas, atuando de forma coordenada e diretamente integrados e vinculados ao SUS.
Esse debate e parte dessas propostas foram expostas no Conselho Nacional de Saúde (CNS) por ocasião da apresentação da proposta do Farmácia Popular em 2004.
O governo até iniciou o Programa com um pequeno número de farmácias, constituindo a denominada Rede Própria através de parcerias com a Fiocruz, estados e municípios.
A partir de 2006, no entanto, optou pelo modelo privado através do credenciamento de estabelecimentos comerciais em todo o país, no programa que ficou denominado “Aqui tem Farmácia Popular”.
Mesmo tendo em mais de uma oportunidade pautado, debatido e criticado o processo que estava em curso, o Conselho Nacional de Saúde não conseguiu revertê-lo.
Em 2017, foi decretado o fim da Rede Própria Estatal que então contava com 467 estabelecimentos, consolidando-se a opção pelo modelo privado que demanda anualmente bilhões de reais no orçamento.
São R$ 4,2 bilhões aprovados na Lei Orçamentária Anual de 2025! Além de inúmeras denúncias de irregularidades, tem sido um grande negócio sem qualquer risco para o empresariado da área, apesar de reclamações pontuais.
Um outro nefasto efeito colateral passou a acontecer com o advento do Farmácia Popular. Parte dos gestores municipais passou a se desresponsabilizar mais ainda pela aquisição do elenco de medicamentos necessários para atender sua população referenciada, orientando as pessoas a buscarem na rede de estabelecimentos do Programa os medicamentos que lhes eram prescritos.
Diante de uma população carente e com enormes dificuldades de acesso, todo e qualquer serviço que for disponibilizado no SUS terá obviamente impacto.
Com o Farmácia Popular não foi diferente. Com a ampliação do acesso das pessoas, particularmente a medicamentos de tratamento e controle de doenças crônicas e degenerativas, houve importante repercussão na diminuição, por exemplo, no número de internações. A pergunta que fica é: a que custo financeiro e político?
E o custo do equivocado modelo adotado pelo governo foi o fortalecimento da rede privada, do conceito do medicamento mercantilizado como fonte de lucro, da cultura do medicamento enquanto mercadoria a ser adquirida como qualquer outra e o desperdício da oportunidade histórica de começar a construir uma nova ordem racional e resolutiva do medicamento no país.
É fato que a aprovação da lei 13.021/2014, que definiu a Farmácia como estabelecimento de saúde, tem permitido alguns progressos importantes na assistência farmacêutica, mas ainda muito distante daquilo que realmente é necessário se fazer.
O Brasil tem uma rede privilegiada de laboratórios farmacêuticos oficiais que cumprem em alguns lugares papel fundamental na produção de medicamentos os mais diversos.
Convênios desses laboratórios com os governos federal, estaduais e municipais poderiam suprir uma carência crônica no SUS, principalmente nas redes municipais, de medicamentos básicos necessários para os quadros de doenças mais presentes na população e também as doenças negligenciadas, estas com pacientes abandonados pelos grandes laboratórios.
Juntando-se a isso, um Projeto nacional de estruturação de estabelecimentos farmacêuticos como estabelecimentos de saúde, em todos os municípios do país, com a capilaridade que o SUS encerra em suas Redes Municipais, promoveria uma revolução não somente na Assistência Farmacêutica, mas também no Sistema e na saúde da população como um todo.
Para que isso se viabilize é preciso ter um governo realmente comprometido com o SUS, pensado e construído de acordo com os princípios da Reforma Sanitária, ter gestores do SUS comprometidos com seus princípios basilares, conhecedores do seu arcabouço conceitual, que entendam definitivamente que ele – o SUS – não se sustenta na lógica estabelecida pelo mercado.
O SUS precisa, por fim, de gestores que saibam e defendam que o debate sobre as relações entre o público e o privado num estado democrático que estabelece a saúde como direito de todos e dever de Estado, nunca ‘’está superado’’– diferente do que disse o ministro da Saúde”. E mais que isso, neste momento estratégico da história, é um debate que está mais presente do que nunca.
Todo e qualquer movimento ou proposta que fortaleça no inconsciente coletivo da população a ideia de que medicamento é mercadoria e estabelecimento farmacêutico é estabelecimento comercial, deve ser não somente evitada, deve ser também banida.
A população tem direito de ter à sua disposição farmácias e drogarias como estabelecimentos de saúde e de medicamento como um bem necessário à sua saúde.
*Francisco Batista Júnior é farmacêutico do SUS no Rio Grande do Norte. Membro da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS)
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