Vou me meter em mais uma situação delicada hoje. Decidi escrever sobre o meu novo livro, Fragmentos. Tenho uma desculpa: ele está saindo da gráfica e será lançado no dia 3 de dezembro, em São Paulo.
Mas por que “situação delicada”? É que escrever sobre a própria obra lança qualquer escritor, artista ou subliterato, gênio ou charlatão, em dificuldades verdadeiramente desafiadoras. Se ele fala bem do que escreveu, será visto como pretensioso, cabotino. Se fala mal, para disfarçar, corre o risco de afugentar o leitor. E se adota um tom neutro, provoca tédio, inapelavelmente. Assim, o autor não deve, em princípio, tentar ser o crítico de si próprio. A obra precisa falar por si mesma, prescindindo de explicações.
Uma forma de fugir dessas armadilhas é escrever uma espécie de pequena continuação do livro, isto é, não procurar propriamente apresentá-lo, destacar a sua estrutura e as suas ideias centrais etc., mas apenas escolher um ou dois temas do livro e discorrer um pouco sobre eles. Isso talvez proporcione ao leitor uma ideia do que é o livro, do interesse que possa ter – e quem sabe? – suscitar curiosidade.
É o que vou tentar fazer aqui. Vejamos. Um tema recorrente no livro, bem presente em todas as suas partes, tanto nos aforismos, como nas crônicas e nos contos, é a relação entre arte e realidade, entre memória e fabulação. Os não artistas pensam às vezes que é da natureza do artista imaginar, inventar, fantasiar. Não me parece que seja bem assim. O artista finca raízes na sua vivência e na dos outros. Se não o faz, dificilmente será bem-sucedido. Vive, sofre, observa a vida dos outros, sofre com eles, e a partir daí elabora.
Os artistas sabem disso instintivamente e vampirizam a vida. Atracam-se aos acontecimentos, grandes e pequenos, sociais e individuais, felizes e infelizes. Selecionam, adornam, transfiguram, é verdade – mas nunca perdem o contato com a realidade.
É o caso de Truffaut, por exemplo, cujos filmes, vários deles, aparecem recorrentemente nos Fragmentos. Quem sabe um pouco de sua vida, da sua infância de isolamento e abandono, entende melhor vários dos seus personagens masculinos. Ele próprio costumava dizer que seus filmes eram autobiográficos, biográficos ou uma combinação das duas coisas. Sobre a história de amor trágica de A Mulher do Lado, Truffaut revelou que o roteiro se apoiava em parte na sua história infeliz de amor com Catherine Deneuve. Pelos diálogos, disse ele, deveria pagar direitos autorais a ela.
O que está por trás dessa relação da arte com a vivência? Talvez a explicação esteja no fato de que a realidade tem uma imensa complexidade e riqueza, uma estrutura interna insondável que confere à vida uma força e um sabor que nenhuma criação ex nihilo alcança. Na verdade, imaginar é próprio dos subliteratos. Quando a escrita, ou qualquer forma de criação, se dissocia do real, ela passa a flutuar sem rumo, não convence ninguém e, pior, cai frequentemente no ridículo.
Uma ressalva. Não estou aqui falando de plausibilidade. O implausível tem o seu lugar na arte. Até porque a vida nem sempre é plausível. Quanto do que nos acontece não é inacreditável? Vertigo, de Hitchcock, uma obra-prima, trata a plausibilidade aos pontapés. E, mesmo assim, fascina e retém o espectador. Induz, como a ópera wagneriana, à suspensão da descrença.
Os Fragmentos são eles mesmos uma pequena demonstração disso – sem que eu tivesse em momento algum planejado o livro dessa maneira. Ele foi se configurando aos poucos, insensivelmente, como uma mistura de reflexões, memórias e ficções. Mas não como compartimentos estanques; são sempre tênues as fronteiras entre esses três gêneros. O que é memória? O que é ficção? Deixei a critério do leitor fazer a distinção – até porque tive, às vezes, vergonha, confesso, de assumir certos textos como lembranças.
Isso me traz a um outro tema do livro que gostaria de retomar um pouco hoje – o papel do sofrimento tanto na vida como na arte. Na apresentação, escrevo que o livro é intensamente romântico. Em outras palavras, ele tem a sua origem no sofrimento. Sem querer subestimar a sensibilidade do leitor ou leitora, lembro que romantismo não é sinônimo, nem mesmo parente de sentimentalismo. O romantismo não é um passeio no parque. Ao contrário, é uma forma problemática e até sinistra de sentir a vida e o mundo.
Se tivesse de definir romantismo em uma palavra, diria que ele é a exaltação do sofrimento. A exaltação artística, a transfiguração artística do sofrimento. No Ocidente, começa com Cristo na cruz. E o romantismo, do século XIX em diante, é essa mesma valorização do sofrimento, mas já sem a consolação da religião e da crença em Deus.
Não sei se estou sendo claro. Dou um exemplo. Heinrich Heine, que figura com destaque nos Fragmentos, era um crítico feroz do romantismo do seu tempo. Mas não deixava de ser ele mesmo um romântico. Dele se disse que “estilizava o sofrimento para poder suportá-lo”. Eis aí, nessa pequena frase, toda uma definição do que é o romantismo – ele é todo um esforço, das catedrais aos sonetos, para tornar o sofrimento humano suportável.
Para ser artista, portanto, é preciso, como disse Dostoievski (outro autor que figura repetidamente no meu livro), “sofrer, sofrer, sofrer” – repetindo a palavra três vezes para dar a devida e dramática ênfase. Para ser realmente um artista, deve-se ter vulnerabilidade ao sofrimento e, ao mesmo tempo, resiliência e criatividade para suportá-lo e transformá-lo em algo que traga alívio e consolo para todos.
Finalizo dizendo que este é o meu livro mais pessoal, mais revelador de quem sou ou tentei ser. Dei o meu melhor. Mas o meu melhor será suficiente? Fiz essa pergunta na apresentação ao livro e a repito aqui, na esperança, meio aflita, de que ele encontrará alguma acolhida, alguma identificação do leitor ou leitora com as vivências e os tormentos que procurei retratar. •
Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fragmentos (do coração)’